"Retiramos tudo o que possa significar algo de mais preciso (para não magoar) e acabamos por ficar com algo sem sabor e sem cheiro, baseado em generalidades confortáveis"
Natal:
24 de dez. de 2018, 14:10
— Tatiana Ourique / AO Online
Maduro Dias é cristão e como tal celebra, no Natal, o nascimento de Jesus. O historiador terceirense defende que as tradições vão-se adaptando com o intuito de preencher estados de alma e que não há nada de errado nessa mudança. O problema é, diz Maduro, a descaracterização das festas para não ofender ou chocar quem não é católico,"Diria que se perdeu muita da complexidade e
densidade do chamado espírito de Natal, ao mesmo tempo que nem se ganhou nem se
perdeu, no que tem a ver com as manifestações materiais ligadas à quadra. A cultura é dinâmica. A cada momento do tempo
as pessoas procuram praticar um conjunto de actos que lhes preencha
determinados vazios de alma, determinados anseios do espírito, determinadas
necessidades de emoções.
De
facto, a cultura é imaterial, por definição, mas as actividades, objectos,
produtos que resultam das atitudes e modos de pensar e ser, materializam isso.
Logo, se, num determinado tempo- por exemplo, há 100 anos- as pessoas
praticavam determinados atos e, agora, deixaram de os praticar. Se a gente procurar
um bocadinho vai ver que, das duas uma: ou esses atos foram substituídos por
outros, que permitem o mesmo resultado “de alma”, digamos assim, ou deixaram de
ser necessários porque perderam a sua razão de ser.
Dou o exemplo da questão do bacalhau na ceia antes da missa do galo, ou do polvo,
como acontece noutras zonas de Portugal. Primeiro é bom saber-se que o costume
era comer frango, ou carne de porco, ou outras “coisas boas” de carne, no dia
25 de dezembro, ao almoço. Antes da Missa do Galo não se comia nada de especial e muito
menos carne. E porquê? Porque as pessoas praticavam muito a abstinência e o
jejum, durante o Advento, como tempo de preparação para a noite em que se
comemora o nascimento de Jesus. Comia-se pouco e comia-se peixe. Claro
que, acabado o tempo de abstinência, marcado pela missa da meia noite,
“saltava-se” para a carne, tornada, desse modo, rainha do dia 25.
Vieram
as influências do Dia de Acção de Graças, faladas, nomeadamente, por todos
quantos emigraram para os EUA. Ao mesmo tempo que caía o costume (que era mesmo
regra) da abstinência. Houve, portanto, uma espécie de cruzamento da
novidade da atitude de dar graças a Deus com o fim do hábito de não comer
carne. Aumentou-se o clima de festa e reduziu-se a questão da penitência, do
sacrifício de preparação (é curioso que muita gente faz jejum atualmente por razões de dieta, de saúde alimentar... Mas se a gente lhes
vier dizer que os cristãos também o fazem, por razões de purificação interior e
de preparação…. Cai o Carmo e a Trindade!).
Resultado?
A gente agora come bacalhau “porque é costume”, ou peru “porque é costume”, sem
sequer pensar o quanto a mentalidade subjacente (de dar graças) nem se alterou
muito, ao mesmo tempo que se alterou bastante porque deixámos a abstinência e o
dia 25, passando a comemoar mais a noite que o dia, mais o antes que o depois do nascimento d´Ele.
O que dói é
a superficialidade do “fazer o bem”, do “espírito de Natal”, baseado, muito,
nos presentes que se trocam, nas coisas que se dizem, nos momentos diferentes
que se constroem, em voltas de muitas materialidades sem sentido. Não gosto de ver as pessoas fazerem porque é costume, sem
tentarem saber mais a fundo as razões.
Perderam-se
referências, perdeu-se densidade de razões, manteve-se ou substituiu-se atos e
objetos e fica-se por aí.
Perante
todas as listas que os jornais fazem dos costumes dos quatro cantos do país e
do Planeta, e dos costumes e diferenças de costumes daqui e dali, sinto que se
anda ao de cima das coisas, sem questionar ou ir ao fundo, porque são assim ou
porque deixaram de ser assado.
Há,
porém, uma coisa, que, essa sim, me irrita. Natal é uma data de comemoração
cristã. Tem um sentido, uma razão, um objetivo. Significa, para os cristãos,
como eu, um conjunto determinado de pensamentos e entendimentos da vida e das
coisas.
Nada
impede que outros façam comemorações por esta época, seguindo as suas opções,
que, gostaria, fossem tão densas e profundas de significado como é o “CHRISTmas” (pois! Tem Cristo no nome). Mas a descaracterização progressiva. Pior que
isso, o retirar tudo o que possa significar algo de mais específico, nada dizendo,
em nenhum sentido, para não magoar quem quer que seja. Destrói-se tudo e acabamos por ficar com algo sem sabor e sem cheiro, baseado em generalidades
confortáveis.
Acho
que caminho a seguir devia ser exactamente o contrário: o percebermos as razões
das nossas atitudes, por detrás do que fazemos, comemos ou construímos, e,
depois, aceitar, querer trocar experiências e perceber quais as razões dos
outros.
Dou
um exemplo. Tenho um amigo, em Israel, judeu praticante, que nasceu em Portugal
e aqui viveu, até emigrar para Tel Aviv. Ele manda-me votos de Feliz Natal
(sabendo que eu estou a comemorar o nascimento de Cristo) e eu, auxiliado por
uma calendário electrónico que me ajuda muito, procuro corresponder com um voto
de Feliz Hanukkah (que é uma festa judaica que comemora a vitória da luz sobre
a escuridão) e acontece, como festa móvel, pela mesma ocasião, mais semana
menos semana.
A
curiosidade é que ambos festejamos, acendemos luzes, enfeitamos espaços, comemos
coisas doces e saborosas, algumas bem parecidas. As razões é que são
diferentes. Fico feliz por ele e ele fica feliz por mim.
Nos
Açores, no meio deste mundo Atlântico e cruzado de gentes que passaram e passam
de cá para lá e de lá para cá, vindas dos quatro cantos do planeta, acho bonito
ver costumes que, de facto, acabam por agregar toda essa relação cósmica,
reconstruindo, aqui, em cada ilha e lugar, uma nova síntese.
Descobrir
em cada atitude, que hoje tomamos, ou em cada coisa que fazemos, o longo fio de relações
e continuidades, que pode acabar do outro lado do mundo, é um fascínio. E
tentar perceber as razões porque foi adoptado por cá, em substituição ou
acrescento do que já existia por cá, é lindo! É a isso que chamo densidade e é
isso que se devia e deve procurar sempre, por maioria de razão num tempo como o
Natal. A diversidade só enriquece, mais ainda, a quadra.
E, claro, fico feliz quando se fazem
presépios grandes e pequenos , como o animado e mecânico que fizeram este ano
na Praia ou quando algum descobre um receita de doce ou quando se faz fatias fritas ou
quando me dizem que o menino mija ( mas aí pergunto até que ponto os licores
foram feitos em casa com o esforço de preparação que permite conversar acerca
deste ser mais ou menos doce ou saber mais ou menos a tangerina que o da
vizinha de baixo ou o da “prima Gertrudes”).
Aqui há anos fui a casa de
uma pessoa que trabalhava na Base das Lajes e o menino dela mijava Vat69,
Dimpley ou Bailey’s! Cada um procurava mostrar as suas riquezas. Enquanto umas resultavam do trabalho de casa, outras vinham do lugar maravilha onde
trabalhava."