Quem está doente também precisa de “mimos”
10 de fev. de 2022, 08:36
— Lusa/AO Online
Aconteceu
no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, visitado pela Lusa a
pretexto do Dia Mundial do Doente, que se assinala na sexta-feira, mas
haverá outras unidades de saúde com iniciativas semelhantes. No
Dia Mundial do Cancro, duas dezenas de profissionais de saúde e doentes
partilharam dúvidas e experiências, integradas numa iniciativa que
junta os serviços que tratam doentes oncológicos no hospital de Gaia e
as associações que lhes prestam cuidados de forma informal e que,
“muitas vezes, acabam por ficar na sombra”, assinalou à Lusa a médica
Telma Costa.Com 37 anos, a oncologista já
teve de enfrentar um cancro. “Afinal, os médicos também ficam doentes”,
diziam-lhe, na altura. “É uma doença que não escolhe, atinge qualquer
um”, assinala.“Sempre valorizei muito a
opinião dos doentes, o que os doentes pensavam, o que os doentes
queriam. É óbvio que, a partir do momento em que estou também do outro
lado, ainda percebo mais isso”, reconhece, contando como foi difícil
“desligar o complicómetro” da médica e “ser só a doente”.“O
sistema de saúde oferece muita coisa, mas os recursos são limitados e
ainda bem que conseguimos ir encontrando soluções fora do contexto do
hospital”, realça, destacando que, “se não fossem as associações e
algumas iniciativas comunitárias, ficava tudo muito mais difícil de
gerir”.Membro da Associação de
Investigação de Cuidados de Suporte em Oncologia, Telma sempre valorizou
“a voz do doente” e acha que esta voz “começa a ganhar força” em
Portugal. “Começamos cada vez mais a querer ouvir o que os dentes têm
para nos dizer”, frisa.As doenças
oncológicas têm tido um aumento muito significativo entre a população
portuguesa, sendo a segunda causa de morte (depois das doenças
cérebro-cardiovasculares).Durante a
quimioterapia, Telma fez um programa supervisionado de exercício físico,
para tentar mitigar alguns sintomas e prevenir complicações a longo
prazo. Durante a sessão no hospital de
Gaia, uma doente contou que pratica zumba à segunda-feira e fica “toda
partida” o resto da semana e outra logo acrescentou como agora lhe
custam mais três quilómetros do que antes lhe custavam trinta. E a
conquista que é “ir às compras e voltar com um saquinho na mão?”,
perguntou outra.As profissionais de saúde
presentes destacaram as vantagens de “preparar e planear”, notando que o
cancro, sendo um acontecimento traumático e sempre inesperado, tem
etapas definidas e os doentes podem estar mais ou menos “em forma” para
os tratamentos.Fernanda Camacho acaba de chegar de uma aula de pilates e, orgulhosa, mostra a musculatura das pernas, rijas de 69 anos de vida.O
cancro apareceu-lhe aos 60 e o “medo” é uma constante. “Mas estou cá,
nove anos já estão ganhos. As tristezas não pagam dívidas”, remata.“A
gente aprende tanto com o cancro, o cancro ensina-nos muito. É um
aprendizado que… não queria ter passado por ele, mas já que passei,
aprendi muito e valorizo muito”, diz.Esteticista
num salão que “o cancro levou”, Fernanda realça como foi importante
conhecer a associação Careca Power. “A gente sente-se muito triste,
muito só, muito desacompanhada. (…) É preciso falar com gente que nos
entenda, que esteja a passar pela mesma coisa”, explica.A
Careca Power preencheu “uma lacuna” a que amigos e família não podiam
dar resposta. “Elas entendiam-me. Quando dava um abraço, recebia um
abraço com a mesma intensidade”, conta.Liderada
por Paula Barrerinhas, a Careca Power nasceu de um grupo de partilha na
rede social Facebook entre “carequinhas”, mulheres que tiveram ou têm
cancro. “Quis conhecer casos como o meu, que me dessem esperança”,
justificou. “O tipo de ajuda de que precisamos as associações muitas
vezes não podiam dar. Empatia, carinho… só quem já passou por isso
consegue ter”, disse à Lusa.“Uma vez
Careca, para sempre Careca”, resume Fernanda, explicando que isso “é ser
alegre, é viver a vida, é não baixar os braços porque se tem um
cancro”.Fernanda Gonçalves, voluntária da
Liga dos Amigos do Centro Hospitalar de Gaia, faz-nos sinal para que a
sigamos. Abre a porta de um mini-salão de cabeleireiro, apetrechado com
tudo o que é preciso para tratar de cabelo e até das mãos e dos pés. É
ali que, de costas para o espelho, as mulheres com cancro se despedem
do cabelo, depois de um plano traçado passo a passo, “como se fosse a
prova de um vestido”.“O corte do cabelo
vem de dentro para fora, não se marca”, assinala Fernanda, contanto que
muitas mulheres mantêm a esperança de que “o seu não caia”.“Muitas
nem sequer querem ver” e, para essas, há perucas de vários tons,
escolhidas previamente, que preenchem de imediato o lugar deixado vazio.
Fernanda fala no feminino. “Nestes anos todos, nunca me apareceu nenhum
homem”, justifica. Da banca para as
agulhas, aproveitando “os tutoriais da internet”, Fernanda fez da
reforma voluntariado, tricotado em gorros e turbantes que aquecem as
carecas postas a nu pela quimioterapia. Abre
o armário para mostrar umas quantas caixas com próteses de silicone e
sutiãs próprios. “A Fernanda agora percebe mais de mamas do que de
dinheiro”, brinca a diretora técnica da Liga, Carolina Viana.O assunto é sério, mas o tom é de humor, que, naquele “espaço de partilha”, mesmo quando se chora, “chora-se a rir”.Antes
de, há três anos, o hospital pedir à Liga para centralizar este tipo de
cuidados, as doentes oncológicas andavam de serviço em serviço para
conseguirem tudo o que necessitavam, recorda Carolina.Com
uma centena de voluntários (forçadamente reduzida com a pandemia), a
Liga promove tertúlias, lanches de convívio, sessões de maquilhagem.“São mimos”, resume Fernanda. No caso do hospital de Gaia, gratuitos e cobertos por prescrição.Os
“mimos” acabam também por ser momentos de “apoio psicológico” e de
“puxar pela autoestima”, reflete, recordando o marido que, vendo dali
sair a mulher, penteada e maquilhada, lhe disse: “Ó mulher, estás linda,
pareces a Madonna.”