Putin pretende regresso a pensamento predominante na época do czarismo
Ucrânia
21 de fev. de 2022, 11:33
— Lusa/AO Online
“Putin considera que não existe
uma identidade específica ucraniana, quer um regresso à história do
século XIX quando os russos diziam que existia uma nação russa composta
por grandes russos, os moscovitas, bielorrussos, e pequenos russos, que
para eles eram os ucranianos”, disse è Lusa Volodymyr Yermolenko,
filósofo e professor associado na Universidade Kyiv-Mohyla.“Devemos
entender que Putin é muito mais arcaico que a própria ideologia
soviética. Tentou ir além da ideologia soviética”, assinalou, numa
referência a um longo texto assinado pelo Presidente russo em 16 julho
de 2021, intitulado “Sobre a unidade histórica dos russos e ucranianos”,
que suscitou ampla discussão nos meios académicos e políticos dos dois
países. Um documento que contesta “as
ideias de um povo ucraniano separado do povo russo” e que percorre “uma
longa história comum” de russos, ucranianos e bielorrussos, “herdeiros
da antiga Rus', que foi o maior país da Europa”, um estado eslavo
medieval, inicialmente centrado em Kiev, que remonta ao século IX. Na
sua reflexão, o líder do Kremlin também considera que a “verdadeira
soberania da Ucrânia” apenas será possível “em parceria com a Rússia”,
recorda as comuns ligações “espirituais, humanas, civilizacionais
estabelecidas desde há séculos” e sublinha que “formamos um único povo”.
Putin acusa ainda os “atores ocidentais
do projeto ‘antirrusso’” de terem elaborado um sistema político
ucraniano “com uma constante orientação em direção à separação com a
Rússia, à inimizade para com ela” – independentemente de quem ocupar o
poder –, assegura que o seu país nunca será “anti-ucraniano” e frisa que
“os dirigentes da Ucrânia moderna e os seus mecenas exteriores” apenas
possuem um objetivo, “conduzir ao enfraquecimento da Rússia, que convém
aos nossos adversários”. Na perspetiva do
académico, o chefe de Estado russo pretende “ir mais além da União
Soviética”, onde a ideologia oficial considerava que russos ucranianos e
bielorrussos constituíam “três nações diferentes”, mas com origens
comuns. “A abordagem do estalinismo era a
de que provavelmente “se uniriam num único povo”, mas a construção
original foi delineada por Lenine, e em torno de um projeto federal,
explicitou. “Uma federação de Estados
soberanos, com as suas fronteiras, hinos, escudos de armas. Lenine fez
isso porque havia uma história de independência da Ucrânia, de tentativa
de independência da Geórgia, etc., e desde o século XIX diversos
intelectuais ucranianos sugeriam a ideia de que o Império russo se
deveria tornar num Estado federado”, prosseguiu Yermolenko, também
diretor analítico na Internews Ukraine e chefe de redação da
UkraineWorld.org. “Os ucranianos sugeriam
esta opção porque olhavam para o exemplo dos Estados Unidos. Tentavam
aplicar essa espécie de modelo republicano ao império, republicanizar,
tornar o império numa república de diferentes nações, numa federação”. Perante
este cenário, confrontados com diversos movimentos nacionais, os
primeiros dirigentes bolcheviques tentam e conseguem integrá-los na
União Soviética, fundada em 1922, mas permitindo que mantivessem a sua
identidade, e uma estrutura interna de tipo estatal. “Mas
houve comunistas ucranianos que pretendiam mais poder, não queriam o
estatuto de república autónoma, antes um Estado soberano. Foi uma
interessante abordagem; em resultado disso a propaganda soviética
aceitava praticamente a entidade separada ucraniana. Mas depois tentaram
castrá-la, aproximar a língua ucraniana da língua russa”, recordou.
“Mas a língua mais próxima do ucraniano é o bielorrusso, seguido do
polaco”, e o russo apenas surge de seguida. “Basicamente,
Putin diz que tudo isso é falso, que Lenine é um traidor, mesmo se
considera que o colapso da União Soviética constituiu ‘a maior tragédia
geopolítica’ da época, mas quer recuar para um período anterior, para o
império russo, para o século XIX”. Para
reforçar a sua tese, Volodymyr Yermolenko recorreu a um recente artigo
de Vladislav Surkov (considerado o mentor do designado ‘putinismo’, a
doutrina de Putin), no qual defende que a Rússia tem de regressar às
fronteiras de 1918, “e da próxima vez poderão dizer que deve regressar
às fronteiras do império russo em 1914, o que significa por exemplo um
significativo território da Polónia”. Ao prosseguir a dissecação do artigo de Putin, sustentou que o seu principal objetivo consiste em negar a identidade ucraniana.Mas
para o académico, escritor e ativista ucraniano, “Putin assiste à
progressão para leste dos valores europeus de democracia e direitos
humanos”, acompanhou o “exemplo da Bielorrússia”, apesar do recuo do
movimento de contestação devido à repressão, e pretende com o seu
homólogo de Minsk “erguer um muro face a estes valores democráticos que
se deslocam para leste, por recearem que um dia atinjam território
russo. E penso que num certo momento vão atingir”. Ainda
na sua interpretação, Putin quis sobretudo sublinhar no seu artigo – “e
provavelmente acredita, o seu grande erro” – que os ucranianos são
russos, que o poder em 2014 foi tomado por uma minoria de nacionalistas
que impôs essa ideologia à população baseada no estigma do
“anti-Rússia”, que a população comum rejeita em geral essa abordagem,
que os russos serão apoiados quando regressarem. “A
realidade é totalmente diferente, cerca de 65% dos ucranianos pensa que
a Rússia é a principal ameaça, a ameaça decisiva, e em comparação com
outros. Por exemplo, apenas 15% considera os EUA a maior ameaça”,
enfatizou. “A maioria considera a Rússia a
principal ameaça, os partidos russos estão a perder nas sondagens, o
apoio à língua ucraniana por quem se exprime em russo está a aumentar,
há quem fale russo mas considera-se ucraniano e preparado para defender a
Ucrânia”. Através destas observações,
Volodymyr Yermolenko parece sugerir que o líder do maior país do mundo
em extensão, e que pretende voltar a merecer o respeito dos seus grandes
rivais internacionais, está de algum modo fora da realidade. “Putin
não entende o que se passa, se uma pessoa fala russo deverá aceitar a
hegemonia russa, mas basicamente em cidades da Ucrânia toda a gente fala
russo mas são muito anti-Kremlin, anti-Putin, antirrussos. É o
paradoxo. Pode-se mesmo comparar com os EUA durante a guerra da
independência, todos falavam em inglês, mas os patriotas eram
anti-ingleses”.