PR considera que o diploma utiliza "conceitos altamente indeterminados"
Eutanásia
18 de fev. de 2021, 18:39
— Lusa/AO Online
No
requerimento enviado ao Tribunal Constitucional, o chefe de Estado
aponta também "a total ausência de densificação do que seja lesão
definitiva de gravidade extrema", e pede aos juízes que apreciem a
conformidade do artigo 2.º e, consequentemente, dos artigos 4.º, 5.º,
7.º e 27.º deste diploma com a Constituição da República Portuguesa, por
violação dos princípios da legalidade e tipicidade criminal e da
proibição de delegação em matéria legislativa."Não
é objeto deste requerimento ao Tribunal Constitucional, em todo o caso,
a questão de saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme
a Constituição, mas antes a questão de saber se a concreta regulação da
morte medicamente assistida operada pelo legislador no presente decreto
se conforma com a Constituição, numa matéria que se situa no 'core' dos
direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, por envolver o direito à
vida e a liberdade da sua limitação, num quadro de dignidade da pessoa
humana", afirma Marcelo Rebelo de Sousa.O
artigo 2.º do diploma aprovado no dia 29 de janeiro na Assembleia da
República estabelece que deixa de ser punida a "antecipação da morte
medicamente assistida" verificadas as seguintes condições: "Por decisão
da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria,
livre e esclarecida, em situação de sofrimento intolerável, com lesão
definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou
doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais
de saúde".Segundo o chefe de Estado, com
esta redação "não parece que o legislador forneça ao médico
interveniente no procedimento um quadro legislativo minimamente seguro
que possa guiar a sua atuação". Referindo-se
à expressão "situação de sofrimento intolerável", o Presidente da
República refere que, "todavia, este conceito não se encontra
minimamente definido, não parecendo, por outro lado, que ele resulte
inequívoco das 'leges artis' médicas". "Com
efeito, ao remeter-se para o conceito de sofrimento, ele parece
inculcar uma forte dimensão de subjetividade. Uma vez que estes
conceitos devem ser, nos termos do decreto, como adiante se
concretizará, preenchidos, no essencial, pelo médico orientador e pelo
médico especialista, resulta pouco claro como deve ser mensurado esse
sofrimento: se da perspetiva exclusiva do doente, se da avaliação que
dela faz o médico. Em qualquer caso, um conceito com este grau de
indeterminação não parece conformar-se com as exigências de densidade
normativa resultantes da Constituição, na matéria 'sub judice'",
acrescenta.Marcelo Rebelo de Sousa conclui
que "um conceito com este grau de indeterminação não parece
conformar-se com as exigências de densidade normativa resultantes da
Constituição". Relativamente à expressão
"lesão de gravidade extrema", o chefe de Estado argumenta: "Sendo o
único critério associado à lesão o seu caráter definitivo, e nada se
referindo quanto à sua natureza fatal, não se vê como possa estar aqui
em causa a antecipação da morte, uma vez que esta pode não ocorrer em
consequência da referida lesão, tal como alerta, no seu parecer, o
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida".De
acordo com o Presidente da República, "ao utilizar conceitos altamente
indeterminados, ademais em matéria de direitos, liberdades e garantias,
remetendo a sua definição, quase total, para os pareceres dos médicos
orientador e especialista, o legislador parece violar a proibição de
delegação" constante do n.º 5 do artigo 112º da Constituição, que "veda
ao legislador a delegação da integração da lei em atos com outra
natureza que não a legislativa".O n.º 5 do
artigo 112º da Constituição determina que "nenhuma lei pode criar
outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra
natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar,
modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos".O
chefe de Estado reforça a crítica à "referida insuficiente densificação
normativa" deste diploma, que no seu entender "não parece conformar-se
com a exigência constitucional em matéria de direito à vida e de
dignidade da pessoa humana, nem com a certeza do Direito"."Com
efeito, como se referiu, ao não fornecer aos médicos quaisquer
critérios firmes para a interpretação destes conceitos, deixando-os, no
essencial, excessivamente indeterminados, o legislador criou uma
situação de insegurança jurídica que seria, de todo em todo, de evitar,
numa matéria tão sensível. Esta insegurança afeta todos os envolvidos:
peticionários, profissionais de saúde, e cidadãos em geral, que assim se
veem privados de um regime claro e seguro, num tema tão complexo e
controverso", escreve.Com estes
argumentos, o Presidente da República pede "a fiscalização preventiva da
constitucionalidade das normas do artigo 2º e, consequentemente, dos
artigos 4º, 5º, 7º e 27º constantes do Decreto nº 109/XIV da Assembleia
da República, por violação dos princípios da legalidade e tipicidade
criminal, consagrados no artigo 29.º, n.º 1 e do disposto no n.º 5 do
artigo 112º, relativamente à amplitude da liberdade de limitação do
direito à vida, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da
pessoa humana, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2,
respetivamente, com os artigos 1.º e 24.º, n.º 1, todos da Constituição
da República Portuguesa".Segundo o artigo
29.º, n.º 1, da Constituição, "ninguém pode ser sentenciado
criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a
ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não
estejam fixados em lei anterior".O artigo
18.º, n.º 2, estabelece que "a lei só pode restringir os direitos,
liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na
Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos".O artigo 1.º da Constituição
define Portugal como "uma República soberana, baseada na dignidade da
pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma
sociedade livre, justa e solidária" e o artigo 24.º, n.º 1, determina
que "a vida humana é inviolável".Relativamente
aos artigos do diploma da Assembleia da República objeto deste pedido
de fiscalização preventiva, além do artigo 2.º, que estabelece as
condições em que é despenalizada a antecipação da morte medicamente
assistida, Marcelo Rebelo de Sousa indicou os artigos 4.º, sobre o
parecer do médico orientador, 5.º, sobre a confirmação por médico
especialista, 7.º, sobre o parecer da Comissão de Verificação e
Avaliação, e 27.º.O artigo 27.º altera os
artigos 134.º, 135.º e 139.º do Código Penal, sobre os crimes de
homicídio a pedido da vítima incitamento ou ajuda ao suicídio e
propaganda do suicídio, para que a informação ou participação em atos de
antecipação da morte medicamente assistida nos termos legalmente
definidos neste diploma deixe de ser uma conduta punível. Este
diploma foi aprovado em votação final global no dia 29 de janeiro com
votos a favor da maioria da bancada do PS, 14 deputados do PSD,
incluindo o presidente do partido, Rui Rio, todos os do BE, do PAN, do
PEV, o deputado único da Iniciativa Liberal, João Cotrim Figueiredo, e
as deputadas não inscritas Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira.Votaram
contra 56 deputados do PSD, nove do PS, incluindo o secretário-geral
adjunto, José Luís Carneiro, todos os do PCP, do CDS-PP e o deputado
único do Chega, André Ventura. Numa
votação em que participaram 218 dos 230 deputados, com um total de 136
votos a favor e 78 contra, registaram-se duas abstenções na bancada do
PS e duas na do PSD.Na base deste diploma
estiveram projetos de lei de BE, PS, PAN, PEV e Iniciativa Liberal
aprovados na generalidade em fevereiro de 2020.