Autor: Lusa/AO Online
“Trata-se de uma
promessa que é feita pelo crente num momento de aflição. Uma vez
concedida a graça, a promessa é paga ao Espírito Santo ou ao Santo Amaro
e materializa-se numa peça em alfenim”, adiantou, em declarações à
Lusa, Maria Manuela Sousa, autora do livro “Alfenim, tradição e arte”. Iniciadas a seguir à Páscoa, as festas do Espírito Santo comemoram-se durante oito semanas nos Açores. Na
ilha Terceira, nos domingos do bodo, hoje e no próximo, são arrematadas
peças de alfenim nos impérios (pequenos edifícios com arquitetura
distinta em torno dos quais se realizam as atividades de culto ao
Espírito Santo), cujas verbas revertem para a organização de festas e
para a distribuição de esmolas de carne pão e vinho. Também
nas festas em honra de Santo Amaro, que decorrem em janeiro, na
freguesia da Ribeirinha, na ilha Terceira, se oferecem peças em alfenim. As
promessas dos crentes resultam em muitos casos de doenças e as peças
ganham, por isso, a forma de partes do corpo, como pés, mãos, braços e
pernas, mas há cada vez mais quem ofereça doces com outros formatos, por
promessa ou apenas por devoção. “Encontrei
uma senhora que diz que oferece todos os anos e que às vezes já não é
por promessa, é porque é costume oferecer”, salientou Maria Manuela
Sousa, acrescentando que muitas vezes as pessoas dão alfenim “apenas
para agradecer ou porque tiveram saúde, ou porque foi um bom ano”. Entre
as peças mais comuns estão os símbolos do Espírito Santo (coroa, cetro e
pomba), mas há quem procure inovar, fazendo da confeção deste doce uma
arte. “Há um
determinado segmento do mercado que começa a encomendar peças menos
convencionais, mais originais, com maior criatividade, como cestas de
flores, cestas de frutos, bandeiras, representações da tourada à
corda…”, exemplificou a autora do livro. A
obra, lançada este ano, conta a história do alfenim e apresenta
fotografias, testemunhos das artesãs e a receita, que contém apenas
açúcar, água e vinagre, mas que exige força física e resistência ao
calor. “Não é
um processo fácil. É uma atividade que é considerada pouco apelativa
para as novas gerações, do ponto de vista da confeção, e por aqui
poderíamos considerar o alfenim um bocadinho em risco de extinção. Exige
muita força física, exige exposição em elevadas temperaturas, porque o
açúcar tem de ser muito trabalhado até assumir a forma branca a ponto de
poder ser moldado e de se dar a forma que se quer”, frisou Maria
Manuela Sousa. A
autora entrevistou quatro artesãs e estima-se que existam poucas mais
na ilha Terceira, mas “chegam a confecionar toneladas de açúcar em
alfenim” todos os anos e “não têm mãos a medir”. “São pessoas que aprenderam com as mães, com as vizinhas, com as avós, que depois foram continuando a fazer”, disse. Para
Maria Manuela Sousa, a elevada procura por parte da população da ilha
Terceira e de turistas e a crescente valorização dos produtos artesanais
faz aumentar a esperança na continuidade desta tradição. “Continua
a haver esta fé no Espírito Santo. Eu acredito que este doce, associado
à festividade do Espírito Santo e de Santo Amaro, vai continuar ainda
por muitos anos, porque esta fé continua muito forte e esta tradição
está muito arreigada no nosso povo”, apontou. Os turistas reagem com “espanto” quando percebem que as peças são de comer e que estão integradas num ritual religioso. “O
alfenim é uma coisa estranha. É uma coisa branca, alva de neve, que
parece gesso, mas que afinal é de comer e é muito doce”, frisou a autora
do livro. Socióloga
na Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo e natural de uma
freguesia rural da ilha Terceira, Maria Manuela Sousa sempre conviveu
com esta tradição, mas só agora decidiu conhecer a origem de um produto
ainda pouco estudado, mas que faz parte da “identidade” da população da
ilha. Segundo a
investigadora, a palavra “alfenim” remete para influências árabes e
supõem-se que tenha chegado à ilha Terceira pelas mãos de povoadores
naturais do Algarve. Ainda
hoje se encontram produtos semelhantes noutras partes do país e no
Brasil, onde por exemplo se acrescenta coco à pasta de açúcar.