Pelo menos 182 crianças açorianas entregues a norte-americanos num fenómeno silenciado durante décadas

Hoje 10:00 — Maria Andrade

Pelo menos 182 crianças açorianas foram entregues a casais norte-americanos entre 1946 e 1974, muitas delas associadas à presença militar dos Estados Unidos na Base das Lajes, na Ilha Terceira. Os dados resultam de uma investigação desenvolvida pela historiadora Tânia Santos que, no âmbito da sua tese de doutoramento em História Insular e Atlântica, identificou a saída de crianças açorianas do país na companhia destes casais através da análise de processos de passaporte e testemunhos orais. A investigadora sublinha, em entrevista ao Açoriano Oriental, que este número “em nada retrata a verdadeira dimensão do fenómeno”.Embora a Ilha Terceira seja o principal foco da investigação, este não foi um fenómeno circunscrito à ilha. De acordo com Tânia Santos, existem registos de crianças oriundas de praticamente todas as ilhas do arquipélago, com exceção de Santa Maria e do Corvo.” Para além destas, temos de incluir todas as crianças que saíram totalmente indocumentadas, algumas sem qualquer registo de nascimento”, afirma.O contexto social e económico da época é central para compreender estas entregas. Durante o período da ditadura, os Açores eram conhecidos por serem um meio rural pequeno e conservador, onde a pobreza extrema era uma realidade, agravada pelos agregado familiares numerosos. “A fuga à pobreza e a esperança num futuro mais próspero para os filhos, foi a principal motivação que impulsionou a que famílias açorianas entregassem os seus filhos a casais norte-americanos”, admite Tânia Santos.Outras razões surgem nos testemunhos recolhidos, embora em menos escala, nomeadamente a tentativa de contornar situações de filiação considerada ilegítima. “(...) as mães solteiras sentiam-se impelidas a entregar os seus filhos, mães desprovidas de meios de sustento e estigmatizadas pela sua ‘falta’”, disse.Em outros casos, estava também presente a expectativa de que, no futuro, a criança pudesse ajudar economicamente a família biológica ou que “os filhos ao alcançarem o “American Dream”, este pudesse vir a ser extensível a toda a família”, explicou a historiadora.“Com um enorme silêncio, foi um dos grandes tabus da sociedade terceirense e quiçá açoriana. Permaneceu durante décadas nos silêncios mais recônditos da comunidade.  O próprio regime e o ideário salazarista, terá impulsionado este silêncio. Estas entregas seriam, de certa forma, um atentado ao intuito moralizante, conservador e tradicionalista do salazarismo, seriam uma perversão aos valores da família e aos bons costumes”, afirmou a investigadora.Até 1966 não existia jurisdição que regulasse a adoção em PortugalA adoção é um ato que só passou a ser reconhecido depois da Constituição de 1966. Ainda assim, Tânia Santos revela que, apesar das entregas de crianças a casais norte-americanos remontarem à década de 1950, foram criados mecanismos informais, como termos de consentimento assinados pelos progenitores e termos de responsabilidade assumidos pelos casais americanos.Na altura os documentos eram considerados suficientes pelas autoridades para permitir a saída das crianças do país, mesmo que isso implicasse a perda total de contacto com a família biológica. A doutorada em História Insular e Atlântica afirma que, mesmo após haver jurisdição sobre o assunto, continuam a surgir processos em que apenas constam os documentos informais. Em paralelo, sabe-se que muitas crianças partiram sem qualquer documentação, levantando ainda hoje sérias dúvidas quanto à legalidade destes processos.Visibilidade dos reencontros familiares como fator de maior compreensão públicaO impacto social e psicológico destas entregas foi profundo. Tânia santos afirma que as famílias biológicas enfrentaram julgamentos morais e estigmatização por parte da comunidade, o que levou muitas a manterem segredo, inclusive no seio familiar. O silêncio teve consequências duradouras, impedindo reencontros entre adotados e as famílias biológicas.A atenção mediática aos reencontros familiares tem favorecido uma perceção mais clara deste fenómeno pela sociedade. “O dar rosto à investigação, humaniza-a. Torna-nos mais próximos das histórias que nos contam, das memórias que partilham. E nós terceirenses, no fundo, acabamos por reconhecer algumas daquelas histórias de vida”, disse.Recentemente, Tânia marcou presença num encontro entre irmão, mostrado em Grande Reportagem na SIC Notícias. “Ainda me lembro quando a Ana publicou a foto do irmão numa rede social, explicando que estava à procura dele, que havia sido levado por um casal norte-americano quando ele tinha 9 meses e ela 6 anos. Publicava a única fotografia que tinha do irmão, um bebé. (...) Quando vi a foto, reconheci de imediato, era a mesma foto que constava no processo de passaporte que tinha trabalhado. Com a ajuda da informação que dispunha, a Ana encontrou o irmão”, contou.Tânia acrescenta: “Tive o privilégio de poder estar pessoalmente com eles. Foi muito emotivo! É daquelas situações que nos levam à reflexão: o impacto que os nossos atos, por mais pequenos que sejam, podem ter na vida do outro. E é por momentos como esses, que fez valer a pena toda a investigação”.A investigadora afirma que a sua investigação nunca teve um intuito altruísta, mas sim o objetivo de comprovar a existência do fenómeno.“Se hoje, podemos admitir que existiu, que houve crianças nos Açores que foram entregues a casais norte-americanos, se podemos falar sobre isso, se efetivamente acabamos com um segredo/tabu da nossa comunidade, então valeu a pena.”Para a sociedade açoriana, a principal mensagem deixada pela historiadora é a necessidade de não julgar as famílias à luz da realidade atual. Relembra que as entregas ocorreram em contexto de extrema pobreza, ausência de apoios sociais e inexistência de legislação reguladora da adoção. Muitas famílias, em situações de quase desespero, entregaram um filho na esperança de lhe proporcionar um futuro longe da fome e miséria. “Que pelo menos este filho pudesse viver o American Dream”, concluí.