Autor: Célia Machado
Esta é uma devoção que remonta à segunda metade do século XIX, quando um emigrante da freguesia, regressado do Brasil - onde havia feito alguma fortuna -, trouxe a imagem do Bom Jesus que foi conquistando o coração das pessoas. Expandiu-se ao ponto de sobrepor-se à festa maior da freguesia, em honra do padroeiro São Mateus, a 21 de setembro, que juntava gentes do Pico, Faial, São Jorge e até da Terceira.
Em conversa com o comendador picoense Manuel Goulart Serpa, homem da cultura e da história, debruçamo-nos sobre o passado, o presente e também o futuro de uma festividade que marcou e ainda marca a fé do povo picoense e de outras ilhas.
"Francisco Ferreira Goulart, nascido em 1812, emigrou, ainda jovem, para o Brasil onde morava numa vila chamada Iguape, no Estado de São Paulo, na qual era venerado o Bom Jesus de Iguape. Quando regressou a São Mateus, em 1862, trouxe uma réplica dessa imagem. Aqui fez uma capela própria para o Bom Jesus. A partir daí, a pouco e pouco, a devoção a São Mateus foi decaindo e a devoção ao Bom Jesus de São Mateus, como era conhecida, começou a alastrar. Era uma imagem diferente, que cativava. As pessoas notaram que havia algo de diferente nela e diziam: 'Aquele olhar não engana!'.". As palavras de Manuel Goulart Serpa ajudam-nos a compreender como começou este culto e como ganhou preponderância.
Tal como acontece também com o culto ao Espírito Santo, "há muita gente que não têm a prática religiosa mas que promete, ao Bom Jesus Milagroso. É o mistério da fé; nós não podemos decifrar a fé de ninguém. Esta é uma fé extraordinária. O sentido de ligação, de apego. A pessoa entrega-se ao Bom Jesus porque acredita que dele virá sempre o bem, uma ajuda, um conforto".
E porque é que começa a ser chamado Bom Jesus Milagroso? "As pessoas começaram a acreditar que havia milagres por causa do Bom Jesus. Aliás, a paróquia de São Mateus tinha um livro, que desapareceu, sobre os milagres do Bom Jesus. O padre Rosa, natural da Prainha e que esteve aqui muitos anos, tinha esse livro. Vários padres procuraram mas nunca conseguiram encontrá-lo".
No Pico, Faial e São Jorge surgiram depois outras imagens do Bom Jesus mas "sem conseguiram ter o peso que esta tem".
Para o historiador octogenário, houve dois momentos altos da devoção: durante a emigração pós-vulcão dos Capelinhos e pela Guerra do Ultramar. "A festa era deveras marcante. No dia de arrematar o gado - o que ainda se faz -, de São Jorge vinha, para pagamento de promessas, do melhor gado que havia. Eram as chalupas e os iates, as camionetas que vinham... E a imagem do Senhor Bom Jesus Milagroso estava em todo o lado: na proa de um bote, na lancha da carreira, no emigrante que partia, dentro da própria viola da terra".
É em Oakville que também se pode encontrar uma imagem do Bom Jesus Milagroso, para ali levada por emigrantes de São Mateus do Pico radicados naquela cidade canadiana. "Este triângulo entre Iguape, de onde a imagem veio, São Mateus e Oakville demonstra o poder e a fé extraordinária", enfatiza o historiador.
Os
primeiros cachos de uva
"O Francisco Ferreira Goulart, quando trouxe a imagem do Bom Jesus, nunca imaginou o que poderia acontecer, não só do ponto de vista religioso mas também social e económico. Movimentava muitos meios de transporte durante a festa, as pessoas vinham com dias de antecedência para São Mateus, eram montados restaurantes. Havia pessoas que esperavam por esta festa para puderem ter proveito que lhes servia para o resto do ano", destaca, para falar do impacto económico que a festa chegou a ter. Era por estes dias, na rua principal de São Mateus, que se encontravam os primeiros figos e cachos de uva do ano, muito bem acondicionados e cheirosos em cestas preparadas para a ocasião. Uma oportunidade de negócio que exigia trabalho muito antecipado. "Os vendedores da fruta preparavam as figueiras e untavam os figos para que estes estivessem prontos a consumir por ocasião da festa. No caso da uva, algumas parreiras eram podadas mais cedo", explica Manuel Serpa, acrescentando que também os vendedores ambulantes faziam o seu negócio devido à multidão que ali se reunia.
Outro dos encantos da festa chegou a ser a eletricidade, numa época em que não havia iluminação elétrica. Graças a um gerador, a festa fazia-se de cor: "Aqui, em São Mateus, só havia eletricidade por ocasião das festas. Uma criança que vinha de São Caetano, onde era tudo escuro, e via todas aquelas luzes, que ultrapassam o que era habitual no seu dia-a-dia, era algo de extraordinário", diz-nos, viajando ao tempo da sua meninice.
Falta
um atrativo
Tal como outros festejos religiosos, também a festa em honra do Bom Jesus Milagroso está menos participada. Continuam as romarias até ao Santuário, as promessas mas longe do brilho e das enchentes de outros tempos. Só o programa religioso e a atuação das filarmónicas não é suficiente, defende Manuel Serpa. "Na minha opinião, a igreja devia contratar alguns artistas para a noite da véspera. Nesta altura, se não for um chamariz diferente as pessoas não alinham", destaca.
Por outro lado reconhece que o facto das pessoas possuírem automóveis veio também alterar a dinâmica da festa. "Vinham em grupos, em carros de bois, cantando e bailando. O meu sogro tinha um táxi e eu lembro-me de, depois da festa terminar, serem três da manhã e ainda haver pessoas à espera de um transporte para casa. Hoje vêm nos seus carros só mesmo para a missa e procissão".
Ligação muito forte com o Bom Jesus
Manuel Serpa reside em São Mateus mas é natural da vizinha freguesia de São Caetano. Não é de admirar que, desde criança, haja uma ligação próxima com o Bom Jesus, como recorda. "Em criança, e por causa dos meus pais, cumpri devotamente aquilo que as crianças no meu tempo faziam: no dia da festa, fui vestido de anjinho até aos sete anos. É a santidade do Bom Jesus a irradiar sobretudo na inocência dos mais novos", uma tradição que é perpetuada na sua descendência e que já chegou aos dois netos.
Outra das recordações de infância é a presença nas novenas da festa. Mais tarde, entra para o seminário episcopal e a proximidade com o Bom Jesus Milagroso continua. Durante os 12 anos em que Manuel Serpa foi sacerdote teve a oportunidade de pregar vários sermões durante as festas em honra do Bom Jesus Milagroso e, em diversas ações importantes associadas a este culto, tem sido convidado a intervir. Hoje, aos 80 anos, reitera que a fé é muito grande e que, em vários momentos da sua vida, sentiu a mão protetora do Bom Jesus.