Uma vez que o dito musical
implicava a pirataria nos mares dos Açores, fiz na altura alguma
pesquisa, e qual não foi o meu espanto quando topei com um tal José
Cardoso, nascido em 1656 no lugar da Ribeira dos Flamengos, ilha do
Faial, Açores, e que mais tarde viria a ser o temível Mustafá
Gancho, capitão de um navio pirata.
Procedendo a pesquisas
internéticas, encontrei, um destes dias, um trabalho deveras
interessante de Arlindo Correia, intitulado “Três renegados,
ex-cativos em Argel, na Inquisição, em 1698”
(arlindo-correia.com/100513.hotmail), e dei novamente de caras com
José Cardoso. Desse texto respigo, com a
devida vénia e da forma mais sintética, a história do pirata
faialense que assim se conta.
Numa manhã de fevereiro
de 1698, navegando ao sul de Espanha, o navio italiano “Santa Rosa”
encontra uma pequena embarcação de nacionalidade hamburguesa. O
comandante de “Santa Rosa”, cuidando que aquela embarcação
havia sido capturada por piratas mouros, toma-a à sua guarda e manda
prender os 11 tripulantes (seis mouros, dois europeus e três
renegados). O navio ruma a Lisboa. Ali arribado, o comandante entrega
os três renegados às autoridades. O secretário de estado, Mendes
de Fóis Pereira, manda-os entregar à Inquisição e por Assento da
Mesa de 20/03/1698, os ditos renegados vão parar aos cárceres da
penitência enquanto o processo é instruído.
Vem-se a saber que os
renegados, cativos em Argel, eram: Joseph Cardoso, português,
analfabeto, de 42 anos; William Absen, inglês, de 18 anos; e Cesare
Baldi, italiano, de 18 anos.
Pela Inquisição foram
ouvidas duas testemunhas de acusação: o italiano Giacomo Fava e o
português Pedro Sardinha. Ambos afirmaram que tinham conhecido
Mustafá Gancho em Argel e que desconheciam que ele se chamasse José
Cardoso, que fosse português e muito menos cristão.
Giacomo Fava referiu que o
vira muitas vezes a rezar a Alá, e que era um pirata de maus
instintos, homem soberbo e desbocado que tratava mal os cristãos
cativos, chamando-lhes perros e outros nomes afrontosos.
A outra testemunha, Pedro
Sardinha, referiu que Mustafá Gancho se gabava de andar a corso para
prender cristãos, dizendo mesmo que o maldito havia cometido o
pecado de sodomia.
Perante os inquisidores,
José Cardoso defendeu-se dizendo que apenas simulara renegar a fé
cristã, pois que sempre se mantivera cristão no coração. Disse
chamar-se José Cardoso, nascido nos Flamengos, ilha do Faial. Aos 18
anos de idade embarcara como tripulante de um navio que transportava
vários casais da ilha do Faial para o Brasil (Maranhão).
No regresso, perto da
costa de Portugal, foi capturado por um corsário de Argel, vindo
mais tarde a ser vendido como escravo a um turco de nome Mustafá,
ficando dele cativo durante muitos anos. Mais disse que fora muito
maltratado pelo seu patrão, que lhe dava muita pancada e pouco de
comer. Após tantos anos de cativeiro decidira-se a renegar a fé de
Cristo para não sofrer os maus tratos. Cinco anos depois, o seu
patrão deu-lhe a liberdade pelo contentamento que teve de lhe nascer
um filho.
Foi então que José
Cardoso embarcou em navios que andavam a corso. Começou por ser
marinheiro e artilheiro, depois cabo de guarda, guardião de navios e
sotto-arrais (lugar tenente do comandante do navio), acabando como
capitão de um navio pirata durante 14 anos, afirmando ter cometido,
durante esse tempo, os maiores horrores e atropelos. Um dia, um
combate malfadado deformou a sua mão direita, e a partir daí passou
a ser tratado como Mustafá Gancho.
Segundo consta no Auto da
Fé de 9 de Novembro de 1698, José Cardoso “confessou as suas
culpas, com mostras de sinais de arrependimento, pedindo delas perdão
e misericórdia”, pois estava farto da vilanagem, do deboche, dos
massacres e das aventuras da sua vida corsária. Agora só queria paz
e sossego e louvar a fé de Cristo.
A Santa Inquisição
acabou por ser benevolente para com ele, pois libertou-o “por não
haver prova muito exuberante”. A partir daqui perde-se o rasto e
nada mais se sabe sobre este faialense errante.
O que eu sei é que, para
mim, este José Cardoso, mistura de um excêntrico James Hook
(Capitão Gancho) com um carismático Fernão Mendes Pinto, é um
aventureiro digno de um filme de Hollywood.