O jornalista motoqueiro apaixonado por carros clássicos
6 de out. de 2022, 10:34
— Célia Machado
Quem conhece o faialense Ricardo Freitas reconhece-lhe as muitas
qualidades na profissão que escolheu há 30 anos mas sabe, igualmente,
que no seu coração tem mais amores do que os da canção do Marco Paulo. A
família vem primeiro; depois os motores, que adora desde criança, e o
jornalismo. Ao “AO”, recorda os brinquedos de infância, sempre
relacionados com carros e motas. Desde a coleção de carros de brincar
que, obrigatoriamente, tinha de ter um exemplar de cada tipo (um modelo
familiar, uma carrinha de caixa aberta, um camião, uma viatura dos
bombeiros e outra da polícia, só para mencionar algumas) até aos carros
verdadeiros, adquiridos em adulto, surgiu a paixão pelos clássicos, que
começou pelos 20 anos, por influência dos programas televisivos de
recuperação de viaturas antigas, que via no Canal História e Discovery
Channel. Naquela idade, ter um gosto tão grande por clássicos não era
habitual. Agora, com meio século de vida, olha para essas viaturas “como
autênticas peças de arte, pela sua durabilidade, qualidade e
funcionamento”, não sendo de estranhar que tenha feito parte da Secção
de Clássicos do Clube Automóvel do Faial.Um homem também chora“Não
foi fácil. Vieram-me as lágrimas aos olhos”. O momento não era para
menos; estava a despedir-se da sua carrinha Ford. Não foi a primeira
viatura que alterou mas a que mais o marcou, ao ponto de nunca a ter
alugado para casamentos ou outros eventos - apesar das várias
solicitações - e de não querer que mais ninguém pusesse as mãos no seu
volante. Esta é uma paixão que, para além de muitas horas de trabalho, é
dispendiosa e ter vários carros à porta de casa não sai barato. Foi por
isso que vendeu a carrinha a um colecionador do continente, o que
também lhe permitiu começar mais uma transformação. Esta é mesmo a
palavra certa - transformação - porque o que faz nas viaturas não é com o
intuito de devolver-lhes o estado original mas sim de deixá-las ao seu
gosto. Contudo, o processo envolve vários trâmites para que, no final,
fiquem aptas a ir para a estrada, com as respetivas licenças. “Como
tanto a Ford, de 1932, como o carro no qual estou a trabalhar não tinham
documentos, utilizei chassis de carros diferentes para poder legalizar
as viaturas. Contratei um engenheiro mecânico para fazer os projetos de
alteração, que são apresentados ao Instituto da Mobilidade e dos
Transportes Terrestres para avaliação. Só após a transformação estar
concluída é que dão a aprovação para a viatura ficar legal”, explica.Iniciou
os trabalhos de transformação sem conhecimentos de mecânica e
bate-chapa mas tem a sorte de ter um amigo que percebe do assunto. No
caso da Ford, gastou mais do que aquilo que estava à espera mas há muito
que gostava de ter um carro daquele género. Quando o viu à venda na
internet ficou logo tentado. Levou um ano e meio a terminar o trabalho e
muita da mão de obra foi sua, revela orgulhosamente.Antes alterou
um Toyota Carina, de 1974, que também tem novo dono; ao nível do
mobiliário, de uma viatura fez uma secretária, que usa no seu
escritório, e salvou um outro carro da sucata, que passou a balcão numa
loja, na cidade da Horta.Uma prenda com 80 anosUm Chrysler, da
década de 1940, oferecido por um amigo, é o “bebé” que tem atualmente
entre mãos. Até construiu um barracão para poder dedicar-se ainda mais à
transformação e fazer mais com as próprias mãos, pelo que já está a
demorar para além do tempo que gostaria. Se no caso da carrinha Ford o
espaço era reduzido, por ter apenas dois lugares, com este serão certos
os passeios em família. “Cortei o carro ao meio, vai ter apenas duas
portas e rebaixei o teto para ficar mais ao estilo desportivo. O motor
será V8, com 5.2 cm3 de cilindrada”, conta.Para já, diz que não será para vender mas... nunca se sabe.“Já
tenho o ‘bichinho’ por isso acho que não vou ficar por aqui. Espero que
a minha mulher nunca leia esta reportagem”, diz a rir. “Ela acha que eu
tenho uma ‘pancada’ pois vê-me feliz estando sujo e cheio de ferrugem.
No fundo, ela percebe e também gosta”, continua.Motoqueiro por causa de uma gravidezQuem
vê o Ricardo Freitas em passeios na sua Harley-Davidson Sportster terá
dificuldade em acreditar que, até há dez anos, nunca tinha conduzido uma
mota. Aliás, tinha muito receio, pois achava um meio de transporte
perigoso, e considerava “um pouco ridículo o uso de correntes e de
cabedal” pelos motards. A culpa de toda esta mudança é de quem? Do
cunhado José Alvernaz, da freguesia das Ribeiras, no Pico. Foi naquela
ilha, por ocasião do Cais Agosto, em São Roque, que o cunhado fez o
convite para que fosse com ele num passeio integrado no programa do
festival, já que a esposa estava grávida e não iria acompanhá-lo.
“Aceitei apenas para não ficar mal. Ainda por cima, estava a ficar em
casa dele”, recorda. Para entrar no espírito da iniciativa, vestiu uma
t-shirt preta e umas calças de ganga mais escuras. Hoje cumpre,
“religiosamente, a indumentária” e faz parte da direção do Moto Clube
Ilha Azul. Com aquela primeira experiência, ficou a “adorar”, ao ponto
de ter passado o resto das férias no Pico a aprender a conduzir uma mota
mais pequena, que o cunhado tinha em casa. Regressado ao Faial, tratou
de tirar a carta de condução de mota pesada e comprar um motociclo.
Depois foi a esposa Sandra a render-se às correntes e ao cabedal. “O
passeio é bom e o convívio é ainda melhor”, realça.Sandra e Ricardo
Freitas marcam os diversos passeios em que participam já que a mota tem
um carro lateral, construído por um amigo para que a mulher fosse “bem
sentada”, e em três rodas já passaram por quase todas as ilhas mas o
sonho é Faro, cidade da concentração internacional que junta milhares de
motards de diversos países.Paixão pelo jornalismo“Ao
contrário de muitas pessoas, eu, aos 50 anos, felizmente, ainda me
levanto de manhã para ir fazer o que gosto”. É com esta afirmação que se
refere ao que sente pelo seu trabalho enquanto jornalista mas temos de
recuar até ao início da década de 1990 para entender esta paixão.Com
o 12.º ano de escolaridade concluído, o jovem Ricardo ingressou na
função pública, no departamento de contabilidade da Secretaria Regional
do Turismo e Ambiente (à época era secretário Eugénio Leal). Estava já
certo que entraria para os quadros mas a verdade é que, embora tivesse
colegas muito bons e efetivar na função pública fosse – e ainda é – o
sonho de muitos, tratar de despesas correntes – de aquisição de lápis,
caneta e papel – não era o que tinha em mente para si. A progenitora
deu-lhe uma sarabanda mas de nada serviu pois a decisão já estava
tomada: ia aceitar o convite de Souto Gonçalves, então diretor do
semanário “Incentivo” (publicação já extinta mas cujo título foi
recuperado anos mais tarde) e que havia sido seu professor de jornalismo
no secundário, para se juntar à redação, o que aconteceu a 1 de agosto
de 1992 (tinha 20 anos). Continuava ligado a lápis, caneta e papel mas
de uma forma em que tudo lhe fazia mais sentido, enchia-lhe as medidas,
como o próprio afirma. De lá foi para o jornal “O Telégrapho”, também no
Faial, seguiu para o “Açoriano Oriental” e rádio “TSF”, enquanto
correspondente na sua ilha, e, um ano depois, para a “Antena 1 Açores”,
onde se mantém há duas décadas. Desde 1997 que é, em simultâneo,
correspondente da “Agência Lusa”.Falta-lhe trabalhar em televisão mas é algo que não lhe interessa, embora tenha recebido um convite nesse sentido. Se
pudesse escolher, escreveria para um jornal: “Foi onde comecei, onde me
sinto mais à vontade e me permite ter algum tempo para pensar antes de
elaborar a notícia. Na rádio é mais imediato e suscetível de erros e
falhas porque há uma maior pressa para colocar a notícia fora”.“Tanto na minha profissão como na recuperação e transformação de carros, gostaria de ser mais perfeccionista”, conclui.