No Estado Novo, a Igreja foi “amordaçada”, mas “não se resignou”
15 de abr. de 2024, 12:08
— João Luís Gomes/Lusa
Para
o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), no início “a
Igreja também se anichou dentro do regime”, desde logo porque “era
sobrevivente de toda a confusão política de ainda antes, no século XIX, e
depois no século XX, com a República, que foram [tempos] muito
violentos” para a instituição.“E o regime
dava assim uma espécie de ninho, de refúgio. E esse foi o mal-entendido,
porque depois as coisas vieram a complicar-se e não foi a Igreja que
saiu vitoriosa desse confronto”, diz José Ornelas em entrevista à
agência Lusa, destacando que, depois, sobreveio uma “época de luz, de
luta, de descoberta de novas coisas”.Desde
logo, “o Concílio Vaticano II [iniciado no pontificado do Papa João
XXIII, em 11 de outubro de 1962, e terminado em 08 de dezembro de 1965,
já com Paulo VI] aconteceu como algo de tremendamente revolucionário
dentro da Igreja”.“E esse espírito chegou
também a Portugal” através dos padres que foram estudar para o exterior,
“alguns dos quais depois se tornaram bispos – [como] o bispo do Porto
[António Ferreira Gomes], como emblemático de toda esta situação, como
alguém que nunca se vergou aos ditames do regime e que, por isso mesmo,
foi exilado”, recorda.O também bispo de
Leiria-Fátima sublinha, ainda, “a atitude do Papa Paulo VI, que conhecia
bem a situação portuguesa desde quando era Secretário de Estado" do
Vaticano relativamente a um "regime que estava fechado em si próprio e
que não escutava a voz de ninguém, nem dos seus parceiros políticos e
militares, que eram quem permitia a guerra em África, que o condenavam a
nível diplomático, mas depois tornavam possível também a aventura
militar em que Portugal estava metido”.“O
Papa conhecia isto e, por exemplo, muito significativo, nunca nomeou um
substituto para o bispo residencial para o Porto em lugar de D. António
Ferreira Gomes. Foram sempre administradores, até que ele pôde voltar
depois da morte de Salazar”, lembra.O
prelado reforça o papel de Paulo VI no alerta para a situação vivida em
Portugal com a sua visita a Fátima, em 1967, para o cinquentenário das
aparições, e que escancarou o ambiente de tensão entre a Igreja Católica
e o Governo.“Foi [uma visita] tensa,
também no encontro dos dois [Paulo VI e Salazar] em Monte Real, porque o
Papa não quis ir a Lisboa, (…) e foi um momento muito claro, não só o
Papa não ter ido a Lisboa, receber Salazar na Base de Monte Real, vir
diretamente a Fátima e voltar para Roma, mas também logo em seguida [01
de julho de 1970], receber os líderes dos movimentos [africanos] que
lutavam pela Independência”, sublinha José Ornelas, admitindo que “isto
foi algo que, para os próprios crentes portugueses, foi completamente
difícil de entender”.Afinal, vivia-se o
período em que a narrativa oficial era a de que os militares portugueses
estavam em África “a defender a fé e o Império”.Para
o jovem José Ornelas, seminarista na altura, quando o 25 de Abril
chegou, a questão da necessidade de transição para a democracia “estava
completamente resolvida”.“Tinha
educadores, algum deles, a maioria, eram italianos que não concordavam
claramente com o regime. Mas foram muito inteligentes e pedagogos. Nunca
deram propriamente um sinal de que eles queriam fazer a revolução. Ouvi
deles: vocês é que têm de a fazer, nós queremos fazer-vos perceber o
que é realmente uma democracia, o que é um país a funcionar”, relembra o
presidente da CEP.No seminário de
Coimbra, este atual bispo madeirense dos Sacerdotes do Coração de Jesus
(Dehonianos) – congregação de que já foi superior-geral – encontrou
“padres que falavam muito claramente” da situação.“Aí
começou verdadeiramente tudo. Nessa altura, o meu irmão tinha ido
combater para a Guiné. Lembro-me que eu tinha escrito um aerograma a
dizer-lhe que estava muito orgulhoso de ter um irmão a combater pela
pátria. E ele escreveu no aerograma seguinte: ‘Pensava que já tinhas
crescido’. Só isto”, recorda, admitindo que este foi mais um “clique”
que o despertou para a realidade.Posteriormente,
em Lisboa, passou dois anos no então Instituto Superior de Estudos
Teológicos, onde encontrou professores como Frei Bento Domingues, e onde
conviveu com um oficial do Exército que ali ia estudar Teologia.“Era
um oficial que nos fazia fotocópias – na altura, era o stencil que
funcionava, as fotocópias eram raras ainda e caras. Mas ele trazia-nos
sempre do Exército e disse-nos claramente que pertencia ao Grupo de
Informações e que estava no ISET precisamente para saber qual a
temperatura que se vivia por ali. No fim de semana antes do 25 de Abril,
ele disse-nos: ‘esta semana, ou há um banho de sangue ou isto muda’”.E
mudou mesmo, numa altura em que “tínhamos a noção de que o regime
estava podre, estava a cair por si próprio”, acrescenta o presidente da
CEP.