No 75º aniversário da primeira edição de Mau Tempo no Canal

24 de mar. de 2019, 10:00 — Victor Rui Dores

Ao longo dos anos aquela obra foi editada mais nove vezes e traduzida em três ocasiões: Le Serpent Aveugle (1953) e Gros Temps Sur l´Archipel (1988), por Denyse Chast, e Stormy isles: an Azorean Tale (1998), por Francisco Cota Fagundes. A ação de Mau Tempo no Canal, que tem por cenário as ilhas do Faial, Pico, São Jorge e Terceira, tem o seu núcleo de intriga desenvolvido na Horta, cidade onde Vitorino Nemésio concluiu, em 1918, o Curso Geral dos Liceus como aluno externo. A permanência de Nemésio na Horta haveria de marcar profundamente o escritor adolescente (então com 16 anos de idade). Recorde-se que Mau Tempo no Canal evoca um período (1917-1919) que coincide em parte com essa estada. Em 1918, em pleno final da Primeira Grande Guerra, a Horta vivia os resquícios de uma prosperidade económica iniciada em meados do século XIX, pela família Dabney, com as riquezas que provinham da laranja, do vinho, da baleia e do carvão. Possuindo um comércio marítimo intenso e uma impressionante animação noturna, a cidade era então porto de escalas obrigatório, local de reabastecimento de frotas e de repouso da marinhagem. As suas ruas fervilhavam de militares, marujos, gente de todas as nacionalidade e raças. Além disso estavam instaladas na Horta as companhias dos Cabos Telegráficos Submarinos, que convertiam a cidade num “nó de comunicações” mundiais. De resto os ingleses, os americanos, os alemães e os italianos dos “Cabos” haveriam de deixar profundas influências sociais, culturais e desportivas no meio faialense. Deixando a então mais pacata cidade de Angra do Heroísmo, é este ambiente cosmopolita que Nemésio vem presenciar, o que terá contribuído, decisivamente, para que ele viesse mais tarde a escrever essa obra mítica e irrepetível que dá pelo nome de Mau Tempo no Canal, publicado em 1944 mas trabalhado desde 1938. Com abundante informação sobre os Açores, e atravessado por muitas e múltiplas personagens, Mau Tempo no Canal dá conta da história de Margarida Clark Dulmo, pertencente à aristocracia decadente do Faial. Margarida é o epicentro de relações amorosas desencontradas e frustradas, nenhuma delas capaz de lhe proporcionar a realização das suas opções existenciais, sistematicamente negadas pelas convenções sociais, impostas pelo ambiente moral burguês ou mesmo determinadas por uma fatalidade que ordena as histórias de amores recalcados e de vidas amordaçadas ao longo das gerações das famílias Clark e Garcia. Obra-prima pela densidade e perfeição da sua forma e estrutura, pela riqueza psicológica das suas personagens e pela maneira como o autor desenvolve aspetos históricos, culturais, sociais, míticos, etnográficos e científicos relacionados com os Açores, Mau Tempo no Canal é hoje considerado um dos melhores romances que já se escreveram em língua portuguesa, sendo, de acordo com José Martins Garcia, “a síntese de todas as ficções de Nemésio e o remate de toda a idiossincrasia açoriana”. Citando Vasco Graça Moura, António Machado Pires, nemesianista de primeiríssima água, lembrava recentemente que as três obras-primas da ficção portuguesa são: Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, Os Maias, de Eça de Queiroz e Mau Tempo no Canal. Nunca é tarde para (re)ler o grande romance da açorianidade – que rima com universalidade.