“Não vale a pena falar em crise de natalidade quando não se dá condições às pessoas”
Europeias2024
21 de mai. de 2024, 08:40
— Rui Jorge Cabral/Paulo Faustino
Qual é o tema principal da CDUpara estas eleições europeias?Como
sabe, a nossa posição relativamente à União Europeia (UE) é extremamente
crítica. Não fomos a favor da entrada de Portugal na UE porque
reconhecemos neste projeto um projeto de unificação que não responde, a
nosso ver, às necessidades dos cidadãos da Europa e, para já, é
importante não confundir a Europa com a União Europeia porque existe
esta tendência que não é inocente. A Europa é algo de muito mais vasto,
muito mais fundamentado, muito mais importante que a UE, que não é senão
uma organização conjuntural, por muito que seja uma conjuntura que dura
há muito tempo. Portanto, para voltar à sua pergunta, o nosso tema
fundamental é, como sempre, expor aquilo que é o projeto verdadeiro da
União Europeia, mas não nos limitamos naturalmente a um papel de
denúncia. É bem verdade que não nos reconhecemos neste projeto e que
achamos que este projeto tem um objetivo que é, no fundo, de uma
concentração capitalista, de uma concentração de meios de produção nas
mãos de poucos. Entretanto, enquanto isto existe e resiste, é muito
importante que, dentro das próprias instâncias criadas neste projeto,
haja uma voz contrária. Uma voz contrária a vários aspetos que se vão,
cada vez mais, esclarecendo. Mas certamente não a abstenção, não o
baixar os braços porque, mesmo neste panorama de jogo viciado, é sempre
possível e necessário defender os interesses reais das pessoas.Os Açores perderam nestes últimos cinco anos por não terem representação no Parlamento Europeu (PE)?Absolutamente
não. Para já não é verdade que não tiveram representação. Isto, mais
uma vez, é um entendimento que não corresponde à realidade. Portugal
inteiro perdeu representação e os Açores com ele. Não é certamente pelo
facto de os deputados viverem numa determinada região que esta região é
mais representada. (...) Ninguém é eleito por um lugar ou por outro
nessas eleições. A lista é nacional é única e, portanto, o voto de Viana
do Castelo conta exatamente como o voto dos Açores, para dar um
exemplo. Os deputados que daí são eleitos têm e devem ter a função de
representar o país no seu conjunto. Agora, um país é formado por
realidades muito específicas e os Açores são claramente uma dessas. Os
Açores, a Madeira, no fundo todas as regiões têm as suas
especificidades, e aí entra a componente do trabalho coletivo.
Evidentemente, se existe uma organização como a nossa, por exemplo, que
transmite continuamente aos deputados que se encontram em Bruxelas quais
as necessidades reais de um determinado território, isto funciona um
bocadinho melhor. Só neste mandato, temos um conjunto de intervenções
específicas sobre os Açores e específicas acerca de argumentos e
questões muito especiais, desde o impacto do furacão Lorenzo, o porto
espacial de Santa Maria, as obras na Lagoa do Fogo (...) - foram todas
objeto da intervenção dos nossos deputados. O mesmo não se pode dizer de
outras forças políticas que se diluem nas próprias famílias. (...)Os fundos comunitários estão a ser bem aproveitados na Região?Naturalmente
não se pode generalizar. A CDU é uma força séria e, portanto, reconhece
que parte destes fundos serão bem aproveitados e são necessários. O que
nos preocupa muito, para além da utilização desses fundos, que no seu
conjunto não vai na direção que a nossa ver era precisa - e a direção
nomeadamente do reforço da economia regional - é o reforço também nos
transportes. Também digamos que há, por parte da Região, uma espécie de
fuga para a frente em muitas áreas. Dou-lhe o exemplo das áreas marinhas
protegidas. Isto será um mau aproveitamento, a concretizarem-se os
projetos que nem sequer a União Europeia impõe. Mas o que se prevê no
futuro, e é um futuro a brevíssimo prazo desta vez, é uma diminuição
fundamental desses fundos. E esses fundos nem sequer foram nunca fundos,
digamos, virados para uma efetiva melhoria. Foram fundos de compensação
e isto é algo que as pessoas têm que começar a interiorizar. Este
debate, felizmente, está começando a ser muito vivo numa multiplicidade
de países porque não é só Portugal que é afetado por estas decisões
políticas. Temos que imaginar que estes fundos nunca compensaram
realmente a perda, por exemplo, na produção, mas não só, que se
verificou. E nós agora já estamos em condições de ter números que nos
permitam ver que estes fundos ultrapassam pouco metade das perdas
estimadas. Perdas estimadas em quê? O facto de termos abandonado as
atividades produtivas tornou-nos dependentes e então, se somarmos os
custos das nossas importações, que se tornam necessárias para a
sobrevivência, aos custos dos juros pagos nas dívidas, nós obtemos
valores muito superiores aos valores dos fundos (comunitários). E,
portanto, estes fundos são, mais uma vez, algo que aparece como sendo
muito bom, muito favorável ao desenvolvimento, mas na realidade acabam
por não compensar sequer as perdas que as decisões da União Europeia
induziram nas diferentes economias.Qual é, no seu entender, a área em que a União Europeia devia prestar uma maior atenção aos Açores?São
três áreas. Transportes, em primeiro lugar, porque os transportes são
transversais a toda a nossa economia. Transportes para os quais nós há
muito tempo advogámos a criação de um Posei específico porque seremos
sempre nove ilhas, ultraperiféricas. Isso não se alterará e, portanto, é
preciso considerar que as soluções de transporte têm que ser soluções
com caráter de permanência e, evidentemente, nós todos estamos a ver
como tudo isso está a ser completamente descurado e, pelo contrário, as
decisões vão num sentido contrário às necessidades reais. Portanto,
responderia sempre transportes em primeiro lugar, mas também agricultura
e pescas, porque são estas as áreas de excelência que os Açores podem e
devem desenvolver, é onde se acumula saber, uma experiência e uma
capacidade produtiva, que também custou muito a quem investiu e que se
está completamente a perder. Portanto, há uma marginalização total que
leva depois a toda uma série de perversões económicas e sociais. Por
outro lado, e isto é uma exigência também aqui, existe hoje a
possibilidade de um processo de reconstrução industrial, mas claro que é
de uma indústria moderna, com uma incorporação tecnológica e científica
que poderia ser a grande alavanca do nosso desenvolvimento, mas nós
vemos que tudo está predisposto para que esta oportunidade seja negada
tanto aos Açores como a Portugal, como a outros países periféricos, e
que seja concentrada, como sempre, entre a Alemanha, a França, enfim, o
grupo dos grandes países que dominam. E, portanto, se o projeto avançar,
Portugal e os Açores estão destinados a fornecer sol, praia e serviços
ao turismo. O transporte aéreo nos Açores deveria ser financiado
pela UE, nomeadamente as Obrigações de Serviço Público para as ilhas sem
rotas liberalizadas?Sem chegar a falar-se em financiamento direto, a
União Europeia deveria permitir que os Estados se ocupassem disso.
Agora, como sabe, há uma espécie de mantra da livre concorrência que
impede injetar sequer um euro em companhias de bandeira ou em companhias
regionais, e daí nós termos enormes problemas porque, mesmo tendo
disponibilidade, não conseguimos investi-la nestes setores. Entretanto,
não há limite para o investimento possível no privado e vemos que isto é
uma tendência crescente. Isto é algo que nos preocupa muito.
Evidentemente, todas as intervenções possíveis para fortalecer a
possibilidade de um transporte que não é só aéreo. Quando falamos de um
Posei Transportes, estamos sempre a imaginar uma solução integrada
porque o transporte aéreo é, naturalmente, fundamental, mas também
fundamental é o transporte marítimo e as próprias modalidades do
transporte terrestre, e nisso tem uma grande importância também a
dimensão da tutela do Ambiente, que nas nossas ilhas é particularmente
sensível. Isso não pode ser descurado. Nós vemos circular nas nossas
águas e utilizar os nossos portos enormes navios de turismo que não
trazem benefício à nossa economia. Pelo contrário, são capazes de trazer
prejuízos, sobretudo em termos ambientais, e ao mesmo tempo não temos a
possibilidade, pelas restrições impostas pela UE, de financiar um outro
tipo de transporte que seria muito mais compatível e que é muito mais
urgente e necessário às populações e aos produtores das nossas ilhas.O
problema da desertificação dos Açores, principalmente das ilhas mais
pequenas, é uma preocupação em que a UE também deveria intervir?A
minha resposta é que a UE está a intervir e que esta desertificação não é
um acaso. Esta desertificação é, por exemplo, uma das consequências das
políticas de centralização financeira que a UE está a desenvolver
porque, naturalmente, não vale a pena falar em crise de natalidade e
problemas ligados à preguiça reprodutiva das pessoas, quando não se dá
condições a essas pessoas para trabalhar e viver. Portanto, nós podemos
chorar sobre a desertificação, mas essa desertificação tem uma origem,
tem uma explicação óbvia e, se continuarmos nesta trajetória de
concentração de capitais, de riqueza, de possibilidade de produção
nalguns lugares e não noutros, o que iremos sempre obter é isso. Se o
nosso panorama económico é este, como se pretende fixar população nestas
ilhas? A UE ainda é um projeto solidário ou corre o risco de se
desagregar face às ameaças de guerra e de um certo nacionalismo
emergente em vários países? A UE nunca foi um projeto de verdadeira
agregação, portanto aqui cai bem aquele dito popular ‘o que nasce torto,
tarde ou nunca se endireita’. Está na própria origem da UE uma vontade
precisa. A UE é instrumental, é um projeto económico. Aquele conjunto de
valores que são propagandeados, são desmentidos pelos factos. Os
cidadãos da UE nunca se expressaram, foi um projeto imposto do alto e
imposto por determinados setores. Perante isto, é evidente que não se
pode tapar o sol com uma peneira. Perante isto, as populações que sentem
na pele os efeitos desse projeto e da sua aceleração - e estamos, sem
dúvida, numa fase de aceleração - é evidente que se expressarão de
várias formas contra isso. Agora, as formas escolhidas para se
expressarem podem ser formas perigosas e formas que não levarão a um
caminho melhor, mas sim a um perigo, isto sim, está de facto no nosso
horizonte. A um nacionalismo bacoco, por exemplo, que é emergente - é o
que nós antes já dizíamos acerca da extrema-direita. A extrema-direita é
o fruto natural desta situação, a extrema-direita alimenta-se
exatamente deste descontentamento, mas nunca põe o dedo na raiz real dos
problemas. E, portanto, é esta sinergia de interação entre um projeto
que em si é um projeto que não tem, na sua raiz, a melhoria da vida das
pessoas, bem pelo contrário, e os efeitos perversos que provoca,
juntamente com a capacidade de manipulação que é crescente por parte de
certas formações políticas - isso pode dar um panorama verdadeiramente
explosivo e pode levar à desagregação, claro.Que mensagem quer deixar aos eleitores para contrariar a abstenção que costuma a ser muito elevada nas eleições europeias?A
mensagem é sempre a mesma: abster-se não é uma maneira de expressar o
protesto e descontentamento, assim como não é escolher forças políticas
que vivem desta situação e que terão só a ganhar com o piorar das
condições de vida. É preciso, como sempre, não resignar, é preciso, como
sempre, abrir os olhos e observar a realidade para além daquilo que nos
é dito. E repare que isto nos é dito de mil e uma maneiras. Muito
simplesmente, considerarmos se a nossa vida melhorou ou piorou desde que
a União Europeia existe. De há vinte anos para cá tornou-se, de facto, o
centro das decisões. ‘Eu tenho para os meus filhos um panorama pior ou
melhor daquilo que os meus pais teriam para mim?’ Façam estas perguntas e
a realidade suponho que tem força suficiente para abrir os olhos das
pessoas. Agora não é ficando fechados em casa que as coisas melhoram,
isto é verdade tanto em eleições europeias como autárquicas. Só a
participação esclarecida e útil pode alterar as coisas.