Autor: Paulo Simões/Paulo Faustino
O escritor Emanuel Jorge Botelho nasceu em 1950 na freguesia de São Sebastião, em Ponta Delgada. Na passada sexta-feira lançou um novo livro, “Trinta Crónicas”, com desenhos de Urbano.
O seu novo livro nasce porque tem um amigo italiano que, desde cedo, lhe disse ‘guarda para a posteridade’...
Exactamente. Tenho um amigo muito grande há 30 anos, de quem gosto como um irmão, e logo que comecei a mandar-lhe as crónicas - está em Itália e vem cá periodicamente, mas costumo dizer que ele é o italiano mais açoriano, pois sabe tudo das nossas ilhas - logo à partida, creio que na terceira crónica, ele disse-me: ‘Emanuel não deites fora, vai guardando porque no jornal as coisas depois vão dormir para sempre e seria bonito tu juntares isso num livro’. Essa ideia ficou sempre dentro de mim, conversei depois com o Urbano sobre isso e ele também deu a mesma opinião. E foi assim, as coisas foram avançando e fui sempre guardando, até que depois fiz uma escolha. Eram 38 crónicas e escolhi 30, aquelas que à partida mais gostaria que fossem publicadas.
Houve um fio condutor para a publicação ou são crónicas soltas?
Não são crónicas soltas. Estão exactamente pela ordem de saída. A crónica vai-me saindo e o tema varia de um mês para outro.
Sobre o que é que gosta de escrever nas suas crónicas?
Escrevo sobre tudo e sobre nada. Há crónicas em que falo muito sobre a minha vida com meu pai, de amigos que já perdi com muito desgosto, de situações da minha infância, o Largo 2 de Março onde vivi quando era muito pequeno - era um Largo lindíssimo, cheio de luz e alegria e hoje em dia é uma tristeza, não tem movimento absolutamente nenhum. Quero escrever para o mês que vem uma crónica sobre o simples facto de nós, naquele tempo, podermos ligar para as informações dos telefones e atender-nos uma senhora de cá e podermos perguntar, quando se ouvia a sirene dos bombeiros, onde era o incêndio. Perguntávamos as horas, se ia chover e a senhora dizia-nos tudo. E tenho uma história muito bonita: como eu passei muito tempo da minha vida a brincar nos Correios - o meu pai era funcionário nos Correios - a senhora reconhecia a minha voz, e uma vez telefonei para lá a perguntar onde era o incêndio e ela disse-me: ‘oh Botelho, fica descansado que não é na tua casa’. Fiquei descansado, mas foi um grande egoísmo da minha parte telefonar para perguntar onde é que era o fogo porque, no fundo, inconscientemente, o que queria saber era exactamente isso, que não era na minha casa. Não estava preocupado com a casa dos outros. Ela percebeu isso e deu-me uma grande lição.
A relação com Urbano já vem de trás...
A minha relação com o Urbano já vem de há muitos anos e estreitou-se mais há sensivelmente três anos. Temos trabalhado muito juntos. Temos um entrosamento muito perfeito. Gosto muito do trabalho dele. O Urbano gosta das coisas que faço e normalmente vai acontecendo tudo com muita espontaneidade.
Os desenhos que Urbano fez para o livro “Trinta Crónicas” foram de acordo com as crónicas ou houve algum plano?
O mar é uma referência permanente no livro. Os desenhos são ligados ao mar. Disse só ao Urbano ‘faz como quiseres, mas põe-me ao pé do meu pai a pescar” e ele então fez um desenho lindíssimo, reproduzido a preto e branco, e desenhou um peixe a ser apanhado por um anzol com uma simbologia muito grande. Fez desenhos muito bonitos e que têm a ver fundamentalmente com a parte ligada ao mar, sempre presente neste livro.
Os desenhos originais serão expostos?
Creio que o Urbano vai expor a pintura da capa do livro. É na Livraria Solmar, o espaço é pequeno, e não vamos também fazer grandes exposições. Será tudo simples.
Quantas obras já tem publicadas?
Creio que são mais de quinze. Gosto muito do livro pequenino, que é só para dar ao amigo, fora do mercado. Fiz uma colecção muito pequenina que tem três livros: um que se chama “Lorena”, o nome da minha companheira há 40 anos, outro tem o nome de César Cabezza, um escritor que foi a referência fundamental da minha vida, e outro tem o nome do Urbano - um texto que escrevi sobre ele. Gosto muito destas coisas tácteis, que circulam pouco, não gosto dos livros de grande circulação. Já pensei juntar tudo num livro e posso dizer até o título: “Cemitério de Elefantes”. Mas não sei se vou ter paciência, já estou com 58 anos.
Não faz dinheiro com a sua escrita?
Com a minha escrita posso dizer que ganhei 20 contos pelos direitos de autor de um livro que foi publicado na imprensa nacional - Casa da Moeda - e depois não sei se mais 10 ou 20 contos que a Gulbenkian me pagou prontamente quando publiquei lá uns poemas. Nunca recebi mais nada da escrita.
Pagou para publicar“Trinta Crónicas”?
Não. O “Trinta Crónicas” é uma edição do meu querido Ernesto, da Nova Gráfica. Disse-lhe que ia juntar crónicas e gostaria de publicar um livro. Ele disse imediatamente que sim e fez-me essa surpresa maravilhosa que foi o livro de aspecto lindíssimo, capa dura. É uma recordação magnífica.
Quantos exemplares são impressos nesta primeira edição?
Quinhentos exemplares.
Haverá uma segunda edição?
Não sei, quinhentos exemplares para cá é muito.
Os açorianos não gostam de ler autores açorianos?
Não sei dizer. Há muitos anos dirigi, juntamente com Eduardo Bettencourt Pinto - um moço que hoje em dia vive em Vancouver - duas revistas: uma chamava-se “Aresta” e nós tínhamos colaboração com o melhor que havia aí a nível nacional, e mesmo autores internacionais, e fizemos o número 7 de uma revista que começou no continente com o José Henriques Barros e com o Urbano Bettencourt, que se chamava “A Memória da Água Viva” e que, creio, vendeu dois exemplares e só tinha temática açoriana e trabalhos belíssimos. A “Aresta” vendia alguma coisa, “A Memória da Água viva” não.
Qual é a sua explicação?
Não tenho, é estranhíssimo. Há autores açorianos que as pessoas lêem como o Dias de Melo, Daniel de Sá, mas os outros autores creio que são pouco lidos. A nível da escrita, as referências que tenho da crítica - nunca tive razão de queixa - vêm todas do Continente.
Mas porquê: falta de divulgação interna ou algum preconceito em relação à escrita açoriana?
Não sei se se trata de resistência, mas não sei se às vezes não há precipitação na publicação de alguns livros, porque há muita coisa que, se ficasse mais um tempinho a marinar, não lhe faria mal nenhum. Mas ler uma coisa que é nossa e fala de nós, é sempre interessante. Creio que há uns anos atrás, a situação foi um pouco melhor, mesmo a nível do Continente. Seria importante que os autores açorianos fossem mais lidos, mas não tenho a certeza que sejam tão lidos como isso.
Todas as suas crónicas não são publicadas sem que a sua maior crítica os leia e comente consigo. A sua mulher é fundamental neste processo?
A Lorena é muito pragmática em tudo e nisso é o meu braço direito permanente, porque escrevo a crónica e pode ter concepções filosóficas. Acho que é um género literário nobre quando é uma grande crónica, mas é preciso pensarmos que estamos a escrever num jornal e não num livro de filosofia. É preciso que as coisas sejam ditas de uma determinada maneira, mas que sejam perceptíveis e nisso ela ajuda-me muito. Diz ‘sei o que queres dizer, mas diz-me isso de outra maneira para chegar a mais pessoas’. Ou porque não está bem perceptível, ou porque há um parágrafo que não serve para nada. Ajuda-me muito. Eu já sou um homem de grandes limpezas na escrita, mas com ela ao lado, ainda limpo mais.
Vem do seu espírito científico porque, pelos vistos, tinha queda para a matemática...
Pois tinha, mas depois apanhei um professor de matemática no primeiro ano do liceu que me acabou com tudo. Aconteceu a mim o que aconteceu ao grande José Gomes Ferreira. Ele tem um texto muito bonito que diz ‘a mim quem me estragou a infância foi um professor de matemática’. A mim também foi.
Tinha pesadelos com ele?
Tinha pesadelos com matemática porque eu vinha de lidar e brincar com os números no tempo em que a quarta classe era quase um “mestrado”, e de um momento para o outro passei a olhar para o número como uma seta apontada para mim.
A sua união já dura há quarenta anos. Foram um casal diferente na altura. Foi hippy?
Não era hippy, mas tinha o cabelo comprido e sempre fui um homem de gostar muito das novidades. Mesmo na escrita sou assim. Sempre gostei muito de ver o que é que as vanguardas literárias e musicais propõem. Ouvia “Doors”, “Pink Floyd”... E com a Lorena estávamos em perfeita sintonia. Gostava muito de roupas coloridas, alegres...
Foi o primeiro homem a usar calças com flores...
Fui o primeiro homem e a minha companheira a primeira mulher a andar pela rua - ela com uma mini-saia de malmequeres e eu com umas calças “boca de sino “ enormes de malmequeres e com camisa arroxeada. Foi uma altura muito bonita, de muita alegria e amizade. Escrevia cartas de amor e muitos poemas. Também cantava, era vocalista dos “Académicos”. Tinha um ‘vozeirão’ e ganhava de longe mais dinheiro na música do que ganho com os livros. Trabalhámos noites inteiras. Havia um espírito inventivo muito grande, até porque o dinheiro era pouco e vivia-se com dificuldades. Uma das coisas que ainda gostava de fazer era voltar a cantar. Queria só uma viola hoje e cantar música do meu tempo, mais nada.
Saudades de P. Delgada dos anos 60?
Muitas. Hoje em dia Ponta Delgada é uma cidade muito fria. Há coisas que foram desaparecendo...
A sua filha seguiu-lhe as pisadas na escrita...
A Renata creio que ainda está a tempo, e vai estar, de ser uma escritora importante porque, com o pouquíssimo do que produziu até agora, tem uma cotação muito boa a nível nacional. Disse o Manuel de Freitas, que é um poeta de quem eu gosto muito, da nova geração, que é o segredo mais bem guardado da poesia portuguesa mais recente. E é verdade, ela tem muita facilidade na escrita, seja qual for: no ensaio, na prosa corrida, e até na conversa. Se eu aqui estou atrapalhadíssimo, ela aqui aos microfones estaria à vontade. Costumo dizer na brincadeira que nisto não saio à minha filha.
Projectos novos para este ano?
Só há uma coisa pequenina com o Urbano. Tenho um livro pronto. Está para uma editora lá fora, mas não sei se vai sair ou não. Tem um título muito esquecido que é “Casos de Bolso Resolvidos”. O que está previsto começar a trabalhar agora é um livro que terá 4 ou 5 textos pequeninos, com pinturas do Urbano, que têm a ver com a exposição muito bonita que ele fez em Lisboa, “As Flores e as Cinzas”.
Que opinião tem sobre os actuais escritores açorianos? Há uma nova geração ou não se pode falar nisso?
É uma coisa que me preocupa porque, para ser verdadeiro em toda a linha, houve uma geração de grandes escritores aqui há muito pouco tempo, uns já desaparecidos, outros ainda vivos. Por exemplo, o Emanuel Félix que já cá não está, o Álamo Oliveira e outros, e não vejo, sinceramente, a quem passar o facho. O que eu vejo publicado leio com muita atenção nas livrarias, mas creio que a qualidade da escrita, a nível da poesia, baixou. Não sei como vai ser, mas isso depois tudo se resolve. Mais tarde aparecerá um que irá recomeçar tudo.
O seu novo livro nasce porque tem um amigo italiano que, desde cedo, lhe disse ‘guarda para a posteridade’...
Exactamente. Tenho um amigo muito grande há 30 anos, de quem gosto como um irmão, e logo que comecei a mandar-lhe as crónicas - está em Itália e vem cá periodicamente, mas costumo dizer que ele é o italiano mais açoriano, pois sabe tudo das nossas ilhas - logo à partida, creio que na terceira crónica, ele disse-me: ‘Emanuel não deites fora, vai guardando porque no jornal as coisas depois vão dormir para sempre e seria bonito tu juntares isso num livro’. Essa ideia ficou sempre dentro de mim, conversei depois com o Urbano sobre isso e ele também deu a mesma opinião. E foi assim, as coisas foram avançando e fui sempre guardando, até que depois fiz uma escolha. Eram 38 crónicas e escolhi 30, aquelas que à partida mais gostaria que fossem publicadas.
Houve um fio condutor para a publicação ou são crónicas soltas?
Não são crónicas soltas. Estão exactamente pela ordem de saída. A crónica vai-me saindo e o tema varia de um mês para outro.
Sobre o que é que gosta de escrever nas suas crónicas?
Escrevo sobre tudo e sobre nada. Há crónicas em que falo muito sobre a minha vida com meu pai, de amigos que já perdi com muito desgosto, de situações da minha infância, o Largo 2 de Março onde vivi quando era muito pequeno - era um Largo lindíssimo, cheio de luz e alegria e hoje em dia é uma tristeza, não tem movimento absolutamente nenhum. Quero escrever para o mês que vem uma crónica sobre o simples facto de nós, naquele tempo, podermos ligar para as informações dos telefones e atender-nos uma senhora de cá e podermos perguntar, quando se ouvia a sirene dos bombeiros, onde era o incêndio. Perguntávamos as horas, se ia chover e a senhora dizia-nos tudo. E tenho uma história muito bonita: como eu passei muito tempo da minha vida a brincar nos Correios - o meu pai era funcionário nos Correios - a senhora reconhecia a minha voz, e uma vez telefonei para lá a perguntar onde era o incêndio e ela disse-me: ‘oh Botelho, fica descansado que não é na tua casa’. Fiquei descansado, mas foi um grande egoísmo da minha parte telefonar para perguntar onde é que era o fogo porque, no fundo, inconscientemente, o que queria saber era exactamente isso, que não era na minha casa. Não estava preocupado com a casa dos outros. Ela percebeu isso e deu-me uma grande lição.
A relação com Urbano já vem de trás...
A minha relação com o Urbano já vem de há muitos anos e estreitou-se mais há sensivelmente três anos. Temos trabalhado muito juntos. Temos um entrosamento muito perfeito. Gosto muito do trabalho dele. O Urbano gosta das coisas que faço e normalmente vai acontecendo tudo com muita espontaneidade.
Os desenhos que Urbano fez para o livro “Trinta Crónicas” foram de acordo com as crónicas ou houve algum plano?
O mar é uma referência permanente no livro. Os desenhos são ligados ao mar. Disse só ao Urbano ‘faz como quiseres, mas põe-me ao pé do meu pai a pescar” e ele então fez um desenho lindíssimo, reproduzido a preto e branco, e desenhou um peixe a ser apanhado por um anzol com uma simbologia muito grande. Fez desenhos muito bonitos e que têm a ver fundamentalmente com a parte ligada ao mar, sempre presente neste livro.
Os desenhos originais serão expostos?
Creio que o Urbano vai expor a pintura da capa do livro. É na Livraria Solmar, o espaço é pequeno, e não vamos também fazer grandes exposições. Será tudo simples.
Quantas obras já tem publicadas?
Creio que são mais de quinze. Gosto muito do livro pequenino, que é só para dar ao amigo, fora do mercado. Fiz uma colecção muito pequenina que tem três livros: um que se chama “Lorena”, o nome da minha companheira há 40 anos, outro tem o nome de César Cabezza, um escritor que foi a referência fundamental da minha vida, e outro tem o nome do Urbano - um texto que escrevi sobre ele. Gosto muito destas coisas tácteis, que circulam pouco, não gosto dos livros de grande circulação. Já pensei juntar tudo num livro e posso dizer até o título: “Cemitério de Elefantes”. Mas não sei se vou ter paciência, já estou com 58 anos.
Não faz dinheiro com a sua escrita?
Com a minha escrita posso dizer que ganhei 20 contos pelos direitos de autor de um livro que foi publicado na imprensa nacional - Casa da Moeda - e depois não sei se mais 10 ou 20 contos que a Gulbenkian me pagou prontamente quando publiquei lá uns poemas. Nunca recebi mais nada da escrita.
Pagou para publicar“Trinta Crónicas”?
Não. O “Trinta Crónicas” é uma edição do meu querido Ernesto, da Nova Gráfica. Disse-lhe que ia juntar crónicas e gostaria de publicar um livro. Ele disse imediatamente que sim e fez-me essa surpresa maravilhosa que foi o livro de aspecto lindíssimo, capa dura. É uma recordação magnífica.
Quantos exemplares são impressos nesta primeira edição?
Quinhentos exemplares.
Haverá uma segunda edição?
Não sei, quinhentos exemplares para cá é muito.
Os açorianos não gostam de ler autores açorianos?
Não sei dizer. Há muitos anos dirigi, juntamente com Eduardo Bettencourt Pinto - um moço que hoje em dia vive em Vancouver - duas revistas: uma chamava-se “Aresta” e nós tínhamos colaboração com o melhor que havia aí a nível nacional, e mesmo autores internacionais, e fizemos o número 7 de uma revista que começou no continente com o José Henriques Barros e com o Urbano Bettencourt, que se chamava “A Memória da Água Viva” e que, creio, vendeu dois exemplares e só tinha temática açoriana e trabalhos belíssimos. A “Aresta” vendia alguma coisa, “A Memória da Água viva” não.
Qual é a sua explicação?
Não tenho, é estranhíssimo. Há autores açorianos que as pessoas lêem como o Dias de Melo, Daniel de Sá, mas os outros autores creio que são pouco lidos. A nível da escrita, as referências que tenho da crítica - nunca tive razão de queixa - vêm todas do Continente.
Mas porquê: falta de divulgação interna ou algum preconceito em relação à escrita açoriana?
Não sei se se trata de resistência, mas não sei se às vezes não há precipitação na publicação de alguns livros, porque há muita coisa que, se ficasse mais um tempinho a marinar, não lhe faria mal nenhum. Mas ler uma coisa que é nossa e fala de nós, é sempre interessante. Creio que há uns anos atrás, a situação foi um pouco melhor, mesmo a nível do Continente. Seria importante que os autores açorianos fossem mais lidos, mas não tenho a certeza que sejam tão lidos como isso.
Todas as suas crónicas não são publicadas sem que a sua maior crítica os leia e comente consigo. A sua mulher é fundamental neste processo?
A Lorena é muito pragmática em tudo e nisso é o meu braço direito permanente, porque escrevo a crónica e pode ter concepções filosóficas. Acho que é um género literário nobre quando é uma grande crónica, mas é preciso pensarmos que estamos a escrever num jornal e não num livro de filosofia. É preciso que as coisas sejam ditas de uma determinada maneira, mas que sejam perceptíveis e nisso ela ajuda-me muito. Diz ‘sei o que queres dizer, mas diz-me isso de outra maneira para chegar a mais pessoas’. Ou porque não está bem perceptível, ou porque há um parágrafo que não serve para nada. Ajuda-me muito. Eu já sou um homem de grandes limpezas na escrita, mas com ela ao lado, ainda limpo mais.
Vem do seu espírito científico porque, pelos vistos, tinha queda para a matemática...
Pois tinha, mas depois apanhei um professor de matemática no primeiro ano do liceu que me acabou com tudo. Aconteceu a mim o que aconteceu ao grande José Gomes Ferreira. Ele tem um texto muito bonito que diz ‘a mim quem me estragou a infância foi um professor de matemática’. A mim também foi.
Tinha pesadelos com ele?
Tinha pesadelos com matemática porque eu vinha de lidar e brincar com os números no tempo em que a quarta classe era quase um “mestrado”, e de um momento para o outro passei a olhar para o número como uma seta apontada para mim.
A sua união já dura há quarenta anos. Foram um casal diferente na altura. Foi hippy?
Não era hippy, mas tinha o cabelo comprido e sempre fui um homem de gostar muito das novidades. Mesmo na escrita sou assim. Sempre gostei muito de ver o que é que as vanguardas literárias e musicais propõem. Ouvia “Doors”, “Pink Floyd”... E com a Lorena estávamos em perfeita sintonia. Gostava muito de roupas coloridas, alegres...
Foi o primeiro homem a usar calças com flores...
Fui o primeiro homem e a minha companheira a primeira mulher a andar pela rua - ela com uma mini-saia de malmequeres e eu com umas calças “boca de sino “ enormes de malmequeres e com camisa arroxeada. Foi uma altura muito bonita, de muita alegria e amizade. Escrevia cartas de amor e muitos poemas. Também cantava, era vocalista dos “Académicos”. Tinha um ‘vozeirão’ e ganhava de longe mais dinheiro na música do que ganho com os livros. Trabalhámos noites inteiras. Havia um espírito inventivo muito grande, até porque o dinheiro era pouco e vivia-se com dificuldades. Uma das coisas que ainda gostava de fazer era voltar a cantar. Queria só uma viola hoje e cantar música do meu tempo, mais nada.
Saudades de P. Delgada dos anos 60?
Muitas. Hoje em dia Ponta Delgada é uma cidade muito fria. Há coisas que foram desaparecendo...
A sua filha seguiu-lhe as pisadas na escrita...
A Renata creio que ainda está a tempo, e vai estar, de ser uma escritora importante porque, com o pouquíssimo do que produziu até agora, tem uma cotação muito boa a nível nacional. Disse o Manuel de Freitas, que é um poeta de quem eu gosto muito, da nova geração, que é o segredo mais bem guardado da poesia portuguesa mais recente. E é verdade, ela tem muita facilidade na escrita, seja qual for: no ensaio, na prosa corrida, e até na conversa. Se eu aqui estou atrapalhadíssimo, ela aqui aos microfones estaria à vontade. Costumo dizer na brincadeira que nisto não saio à minha filha.
Projectos novos para este ano?
Só há uma coisa pequenina com o Urbano. Tenho um livro pronto. Está para uma editora lá fora, mas não sei se vai sair ou não. Tem um título muito esquecido que é “Casos de Bolso Resolvidos”. O que está previsto começar a trabalhar agora é um livro que terá 4 ou 5 textos pequeninos, com pinturas do Urbano, que têm a ver com a exposição muito bonita que ele fez em Lisboa, “As Flores e as Cinzas”.
Que opinião tem sobre os actuais escritores açorianos? Há uma nova geração ou não se pode falar nisso?
É uma coisa que me preocupa porque, para ser verdadeiro em toda a linha, houve uma geração de grandes escritores aqui há muito pouco tempo, uns já desaparecidos, outros ainda vivos. Por exemplo, o Emanuel Félix que já cá não está, o Álamo Oliveira e outros, e não vejo, sinceramente, a quem passar o facho. O que eu vejo publicado leio com muita atenção nas livrarias, mas creio que a qualidade da escrita, a nível da poesia, baixou. Não sei como vai ser, mas isso depois tudo se resolve. Mais tarde aparecerá um que irá recomeçar tudo.