Médicas implementam consulta de Incongruência de Género no HDES
24 de mai. de 2022, 10:25
— Carolina Moreira
Este pequeno
passo na garantia de cuidados de saúde especializados na Região
constitui um grande avanço para a população transgénero açoriana que
pode agora receber o acompanhamento necessário no processo afirmativo de
identidade, sem ter obrigatoriamente de se deslocar ao continente.Mas
em que consiste a Incongruência de Género? Segundo a psiquiatra e
sexóloga clínica Mariana Bettencourt, trata-se de uma “condição em que
aquilo que a pessoa sente que é difere do género que lhe foi atribuído à
nascença de acordo com os carateres sexuais primários, isto é, os
genitais”.Numa entrevista ao Açoriano Oriental, a médica explica que
esta condição, regra geral, causa muito sofrimento aos indivíduos,
tornando esta população particularmente vulnerável e suscetível ao
desenvolvimento de perturbações mentais.“Muitos pacientes trans são
acompanhados na psiquiatria porque sabemos que se trata de uma população
particularmente vulnerável ao desenvolvimento de perturbações
psiquiátricas, o que está muito relacionado com a forma como são
estigmatizadas e vitimizadas por serem diferentes”, afirma.Mariana
Bettencourt esclarece que, até há dois meses, estas pessoas eram vistas
na psiquiatria do HDES e, depois, encaminhadas para centros
especializados e multidisciplinares em Coimbra, Lisboa e Porto, uma
situação muitas vezes “difícil” devido à deslocação e à falta de suporte
social e emocional.“Estamos a falar de pessoas que, muitas vezes,
não têm esse suporte social, as próprias famílias afastam-se ou
rejeitam-nas e isto é altamente impeditivo para esta população”,
salienta.Com o intuito de colmatar a situação, Mariana Bettencourt e
Catarina Senra Moniz implementaram a consulta de Incongruência de
Género no HDES, em colaboração com o projeto A(MAR) da APF-Açores
(Associação para o Planeamento Familiar e Saúde Sexual e Reprodutiva).Segundo
a endocrinologista Catarina Senra Moniz, em apenas dois meses, estão a
ser acompanhados 10 pacientes, todos de São Miguel, sendo referenciados
através dos médicos de família, do centro A(MAR) e do serviço de
psiquiatria do HDES. “Até já temos pacientes que estão a regressar à
região para continuar cá o tratamento”, realça.Mas como funciona a
consulta de Incongruência de Género? Segundo Mariana Bettencourt, “numa
primeira fase, fazemos um historial do desenvolvimento da pessoa, em que
se confirma a incongruência de género que pode estar ou não associada a
uma disforia, ao sofrimento que está associado à condição”. A
médica adianta que, enquanto psiquiatra, também avalia “se há alguma
perturbação psiquiátrica, como algum quadro depressivo ou de ansiedade
que também precise de intervenção. Depois a pessoa é encaminhada para a
consulta de endocrinologia, se pretender fazer hormonoterapia, ou para
outra consulta de acordo com as suas necessidades”, esclarece,
constatando que existem “vários procedimentos afirmativos de género e o
paciente deve fazer aqueles com que se sente mais confortável e que acha
que vão diminuir a sua disforia”.Já na consulta de endocrinologia,
Catarina Senra Moniz explica que “é sempre feita uma avaliação antes de
iniciar a terapêutica”. “Muitas vezes, é necessário avançar com outros
procedimentos, tais como a cessação tabágica, fator muito importante
principalmente na terapêutica com estrogénios porque aumenta o risco
embólico e é um fator que temos mesmo de eliminar”, destaca, adiantando
que, “em cerca de três meses, conseguimos avançar com a terapêutica
hormonal”.Nesse sentido, a endocrinologista ressalva que o hospital
assegura uma “boa e rápida” resposta aos pacientes, apelando por isso a
que “não tenham a tentação de fazer a terapêutica hormonal por conta
própria, porque o risco é muito elevado. Não vale a pena e nós estamos
cá para ajudar e para aliviar o sofrimento”, diz.Segundo Catarina
Senra Moniz, atualmente, o HDES permite a realização do acompanhamento
psiquiátrico e do tratamento hormonal no processo afirmativo de
identidade, no entanto, “por falta de resposta, as cirurgias continuam a
ser realizadas no continente”, sendo o Hospital da Universidade de
Coimbra “o nosso principal centro de referenciação”. “Há
procedimentos simples, como por exemplo uma mastectomia, que poderiam
ser realizados cá. Por outro lado, a cirurgia de afirmação genital é
muito diferenciada e deve ser realizada só em centros especializados,
como Coimbra ou Porto”, alerta.A especialista adianta ainda que,
neste momento, estão a ser estabelecidas parcerias com outras
especialidades médicas dentro do hospital de Ponta Delgada para melhorar
o acompanhamento da população transgénero, tais como “psicologia,
nutrição e otorrinolaringologia para a cirurgia e treino da voz, porque
se trata de um grande obstáculo para a pessoa trans feminina”, além da
“ginecologia e obstetrícia para a preservação da fertilidade”.Para
as médicas, a implementação da consulta de Incongruência de Género no
HDES era “necessária e urgente” para assegurar cuidados de saúde
diversificados e especializados e eliminar “barreiras”. “Esta consulta
pode ser a porta de entrada para outros cuidados de saúde que esta
população se calhar não procura porque não se sente segura”, esclarece
Mariana Bettencourt.Com o intuito de dar mais um passo na eliminação
destas barreiras, a psiquiatra adianta que já está em preparação um
“guia” para os médicos de família nos Açores, “onde consta uma espécie
de glossário dos termos adequados, onde se explica que tipos de cuidados
é que as pessoas trans podem precisar e como é feita a referenciação
para a consulta no HDES”, afirma.