Madalena Motta: “O segredo da longevidade da Gorreana é viver o seu tempo”
#Empresária
18 de dez. de 2024, 15:45
— Made in Açores
Quais são as suas primeiras memórias
da Gorreana?
Era muito diferente quando nasci. Havia
muitas senhoras a apanhar o chá, mais de cem, na plantação, e as
minhas primeiras memórias são de as ver chegar. Normalmente, as
casas dos empresários não ficam tão perto, mas a nossa é mesmo ao
lado da fábrica. Eu e os meus irmãos crescemos aqui. Lembro-me de a
'Tia Saca-Meia' ir à frente no camião ao lado do condutor, porque
era a mais velha, e atrás iam as outras senhoras sentadas. O sr.
João Criação, um senhor muito grande que usava uma boina, andava
comigo às cavalitas e eu achava-me poderosíssima. No dia em que ele
faleceu, morreu parte da minha infância.
Como vivia o dia a dia da fábrica
nessa altura?
Lembro-me de haver uns tabuleiros e de
as senhoras irem envolver o chá. Em miúda, recordo-me de estar cá
em baixo e sentir as folhas a cair e do cheiro. Nunca gostei muito de
ir à escola porque vivia num mundo livre. Quando, em maio, a altura
em que começava a apanha, ouvia os enroladores, já sabia que o
verão estava a chegar e a escola estava a acabar. Quando os sentia
parar, por volta de outubro, que era quando antigamente começava a
escola, já sabia que estava na hora de voltar. A Gorreana sempre
foi, até hoje, o meu calendário, uma constante.
De que forma a história da fábrica a
inspira?
Quando muito simpaticamente me convidam
para falar em vários sítios, digo sempre que a Gorreana vive o
passado mas vive muito o seu tempo. Foi isso que aprendi com os meus
antepassados. Tenho como exemplo a história do meu bisavô, o
comendador Jaime Hintze, um homem republicano, muito livre, que pôs
aqui na fábrica um mundo novo, a eletricidade. Ele aproveitou uma
ribeira que havia aqui, fez uma turbina e a fábrica passou a ser
mecanizada. Ainda hoje trabalho com essa energia, feita em 1926. Se
eu não a tivesse, estava de porta fechada. Foi tudo feito sem
projetos, ele fez tudo com o seu dinheiro. Há imensas cartas dele
guardadas a pedir dinheiro ao banco, porque ele ia pondo isto tudo na
falência. Depois, ainda por cima, meteu-se na política, porque
recebeu em casa o Raul Brandão, algo que o Salazar tinha proibido.
Foi exilado para Coimbra, de castigo e quando voltou à Gorreana
deixou a política, mas foi sempre um homem perseguido. Chegaram a
pôr uma ação em tribunal alegando que esta hídrica poluía as
águas. Lá teve de gastar mais dinheiro em tribunais, naquilo a que
chamaram o famoso caso das águas da Maia, para provar que a sua
energia era limpa. Há uma entrevista muito interessante com ele em
que confessa que não estava nada bem de finanças por causa destes
problemas todos e perguntam-lhe o que o fazia continuar. Ele
respondeu que é porque nos apaixonamos por tudo o que criamos e acho
isso muito bonito.
Porque é que essa energia é tão
importante para manter a fábrica?
O chá precisa de muita mão de obra e
existem países onde ela é muito barata. Nós vivemos na Europa e
gosto muito de ser europeia. Há valores básicos, para sermos
pessoas felizes e equilibradas. Se não tivesse esta hídrica, o
preço do chá era tão alto, por causa da mão de obra, que era
impossível a Gorreana sobreviver. Foi realmente o Jaime Hintze que
deu o grande passo para o futuro. Há muita gente que vem aqui,
principalmente engenheiros eletrotécnicos, não só pelo chá mas
também para ver o que é uma fábrica de 1926 a trabalhar.
Como é que tem vivido este novo
capítulo para o turismo na região?
Fui convidada para ser palestrante num
encontro sobre turismo no continente e um senhor que falou sobre a
Gorreana disse que fomos o primeiro sítio de Portugal a abrir as
portas ao turismo. Foi o Jaime Hintze que quis trazer pessoas à
Gorreana para experimentarem o seu chá e para que o levassem na
memória. O chá é isso mesmo, uma memória. Pode haver até
melhores, ser-se 'sommelier' e perceber-se muito do assunto, mas
aquele chá que tomamos com as nossas avós é que nos fica na
memória.
Para além do chá, vendem também
outros produtos na loja. Como é que isso começou?
Como vou muito a feiras, os meus
colegas de cá e das outras ilhas começaram a lançar-me o desafio
de vender também produtos deles. Entretanto, começaram a vir também
os colegas do continente, inclusive com uns sabonetes feitos
especialmente aqui para a Gorreana e lá os introduzi também. Hoje
temos a alegria de vender estes produtos dos nossos colegas, o que
também lhes abre uma porta para a exportação. Todos nós ganhamos.
Os Açores são demasiado pequenos para andarmos em guerrilhas e
fechados nas nossas empresas. Devemos abri-las e dar as mãos aos
nossos colegas. O meu pai dizia sempre: não te preocupes com o que
dás mas com o que recebes. Todos os dias entra aqui tanta gente,
acho que era um egoísmo da nossa parte guardar tudo para nós. Quem
guarda para si acaba por perder tudo.
Qual diria ser o segredo da Gorreana
para se manter ao longo do tempo?
O segredo da longevidade da Gorreana é
viver o seu tempo. A BBC veio cá fazer um trabalho sobre a fábrica
e eu pensei que era por ser na Europa, mas eles disseram que não.
Foi por ser uma empresa fundada por uma mulher que, ao longo de todos
estes anos, se manteve na mesma família e que trabalha com a
ciência. Já passamos por problemas económicos muito graves, mas
fomos sempre reconstruindo e agora estamos numa nova era muito boa
para nós. Mas temos de nos preparar e investir. A vida da empresa é
como a nossa vida, com momentos bons e maus. Há que aceitar os
momentos bons e trabalhar.