Autor: Made in Açores
Quais são as suas primeiras memórias da Gorreana?
Era muito diferente quando nasci. Havia muitas senhoras a apanhar o chá, mais de cem, na plantação, e as minhas primeiras memórias são de as ver chegar. Normalmente, as casas dos empresários não ficam tão perto, mas a nossa é mesmo ao lado da fábrica. Eu e os meus irmãos crescemos aqui. Lembro-me de a 'Tia Saca-Meia' ir à frente no camião ao lado do condutor, porque era a mais velha, e atrás iam as outras senhoras sentadas. O sr. João Criação, um senhor muito grande que usava uma boina, andava comigo às cavalitas e eu achava-me poderosíssima. No dia em que ele faleceu, morreu parte da minha infância.
Como vivia o dia a dia da fábrica nessa altura?
Lembro-me de haver uns tabuleiros e de as senhoras irem envolver o chá. Em miúda, recordo-me de estar cá em baixo e sentir as folhas a cair e do cheiro. Nunca gostei muito de ir à escola porque vivia num mundo livre. Quando, em maio, a altura em que começava a apanha, ouvia os enroladores, já sabia que o verão estava a chegar e a escola estava a acabar. Quando os sentia parar, por volta de outubro, que era quando antigamente começava a escola, já sabia que estava na hora de voltar. A Gorreana sempre foi, até hoje, o meu calendário, uma constante.
De que forma a história da fábrica a inspira?
Quando muito simpaticamente me convidam para falar em vários sítios, digo sempre que a Gorreana vive o passado mas vive muito o seu tempo. Foi isso que aprendi com os meus antepassados. Tenho como exemplo a história do meu bisavô, o comendador Jaime Hintze, um homem republicano, muito livre, que pôs aqui na fábrica um mundo novo, a eletricidade. Ele aproveitou uma ribeira que havia aqui, fez uma turbina e a fábrica passou a ser mecanizada. Ainda hoje trabalho com essa energia, feita em 1926. Se eu não a tivesse, estava de porta fechada. Foi tudo feito sem projetos, ele fez tudo com o seu dinheiro. Há imensas cartas dele guardadas a pedir dinheiro ao banco, porque ele ia pondo isto tudo na falência. Depois, ainda por cima, meteu-se na política, porque recebeu em casa o Raul Brandão, algo que o Salazar tinha proibido. Foi exilado para Coimbra, de castigo e quando voltou à Gorreana deixou a política, mas foi sempre um homem perseguido. Chegaram a pôr uma ação em tribunal alegando que esta hídrica poluía as águas. Lá teve de gastar mais dinheiro em tribunais, naquilo a que chamaram o famoso caso das águas da Maia, para provar que a sua energia era limpa. Há uma entrevista muito interessante com ele em que confessa que não estava nada bem de finanças por causa destes problemas todos e perguntam-lhe o que o fazia continuar. Ele respondeu que é porque nos apaixonamos por tudo o que criamos e acho isso muito bonito.
Porque é que essa energia é tão importante para manter a fábrica?
O chá precisa de muita mão de obra e existem países onde ela é muito barata. Nós vivemos na Europa e gosto muito de ser europeia. Há valores básicos, para sermos pessoas felizes e equilibradas. Se não tivesse esta hídrica, o preço do chá era tão alto, por causa da mão de obra, que era impossível a Gorreana sobreviver. Foi realmente o Jaime Hintze que deu o grande passo para o futuro. Há muita gente que vem aqui, principalmente engenheiros eletrotécnicos, não só pelo chá mas também para ver o que é uma fábrica de 1926 a trabalhar.
Como é que tem vivido este novo capítulo para o turismo na região?
Fui convidada para ser palestrante num encontro sobre turismo no continente e um senhor que falou sobre a Gorreana disse que fomos o primeiro sítio de Portugal a abrir as portas ao turismo. Foi o Jaime Hintze que quis trazer pessoas à Gorreana para experimentarem o seu chá e para que o levassem na memória. O chá é isso mesmo, uma memória. Pode haver até melhores, ser-se 'sommelier' e perceber-se muito do assunto, mas aquele chá que tomamos com as nossas avós é que nos fica na memória.
Para além do chá, vendem também outros produtos na loja. Como é que isso começou?
Como vou muito a feiras, os meus colegas de cá e das outras ilhas começaram a lançar-me o desafio de vender também produtos deles. Entretanto, começaram a vir também os colegas do continente, inclusive com uns sabonetes feitos especialmente aqui para a Gorreana e lá os introduzi também. Hoje temos a alegria de vender estes produtos dos nossos colegas, o que também lhes abre uma porta para a exportação. Todos nós ganhamos. Os Açores são demasiado pequenos para andarmos em guerrilhas e fechados nas nossas empresas. Devemos abri-las e dar as mãos aos nossos colegas. O meu pai dizia sempre: não te preocupes com o que dás mas com o que recebes. Todos os dias entra aqui tanta gente, acho que era um egoísmo da nossa parte guardar tudo para nós. Quem guarda para si acaba por perder tudo.
Qual diria ser o segredo da Gorreana para se manter ao longo do tempo?
O segredo da longevidade da Gorreana é viver o seu tempo. A BBC veio cá fazer um trabalho sobre a fábrica e eu pensei que era por ser na Europa, mas eles disseram que não. Foi por ser uma empresa fundada por uma mulher que, ao longo de todos estes anos, se manteve na mesma família e que trabalha com a ciência. Já passamos por problemas económicos muito graves, mas fomos sempre reconstruindo e agora estamos numa nova era muito boa para nós. Mas temos de nos preparar e investir. A vida da empresa é como a nossa vida, com momentos bons e maus. Há que aceitar os momentos bons e trabalhar.