Livro de viagem de Natália Correia aos EUA põe em confronto Europa e América
24 de mar. de 2018, 12:04
— Lusa/AO Online
Com texto fixado a
partir do exemplar da primeira edição (1951) existente na biblioteca da
autora, “Descobri que era europeia”, editado pela Ponto de Fuga,
integra alterações feitas por Natália Correia, com vista a uma segunda
edição que não chegou a supervisionar, bem como fotografias e
reproduções de documentos do seu espólio, incluindo alguns textos
inéditos.Este
livro apresenta, em três tempos diferentes – 1950, 1978, 1983 –, e em
diversos géneros literários – diário, crónica, narrativa, poesia,
oratória –, a descrição e a análise do pensamento e do modo de vida do
povo norte-americano, indispensavelmente comparado com a raiz europeia
de Natália Correia.A
escritora assina também três “notas de viagem”, de 1950, e um texto de
opinião, de 1978, publicados em jornais, bem como um conjunto de textos
diarísticos e discursos, estes inéditos, produzidos quando, em 1983,
representou o então Presidente da República, Ramalho Eanes, junto das
comunidades portuguesas emigradas naquele país.“Todos
esses documentos complementam a presente terceira edição, revista e
aumentada, de ‘Descobri que era europeia’, e constituem um todo
inestimável, que reitera a afirmação de Natália Correia: ‘Somos
estruturalmente diferentes’”, escreve a investigadora, Ângela de
Almeida, especialista na obra da poeta, na introdução à obra.Natália
Correia visitou os Estados Unidos da América, em 1950, com apenas 26
anos, levando uma missão incumbida pelo pedagogo e ensaísta António
Sérgio: a de se pôr em contacto com Norman Thomas, líder do Partido
Socialista norte-americano, com quem António Sérgio mantinha relações,
para tentar que este despertasse o interesse da opinião pública
norte-americana para a causa da resistência ao fascismo em Portugal.Dessa
viagem, resultou “Descobri que era europeia”, uma caracterização do
estilo de vida norte-americano e da grande diferença entre a Europa e os
Estados Unidos.Natália
Correia sublinha várias vezes o sentimento de estranheza que se alia ao
de desencanto e que deixa a nu o sonho desfeito de uma América que,
afinal, não é a “terra prometida”, onde abundam “o leite e o mel”.Segundo
a descrição de Natália Correia, existe uma alma americana, lugar de
heterodoxia, que se esconde por baixo da superfície, onde se escondem as
mais genuínas etnias e culturas que enformam o ser americano.O
racismo é também um tema central dos escritos de Natália Correia, que
dá nota de ter encontrado um país que nasceu com o racismo,
desenvolveu-se no racismo e vive no racismo.A
discriminação das mulheres é um tema também abordado, assim como a
falta de independência de muitos escritores, que têm de obedecer ao
código do ‘bestseller’, a mais completa ausência do belo e da elegância,
a descartabilidade do indivíduo num país submerso na racionalidade, a
solidão e a marginalização dos imigrantes vencidos e dos idosos.O
olhar de Natália Correia assenta também sobre o “pragmatismo da
felicidade”, associado ao ter tudo, “à mais completa morte da
individualidade e à mais completa morte da diferença física, emocional,
intelectual, cultural”.Como
descreve Ângela de Almeida, “em ‘Descobri que era europeia’, a autora
senta o leitor na mesa do debate lúcido e cru, colocando frente a frente
a Europa e os Estados Unidos da América”.Jovem
e culta, a poeta escreveu na altura que falta naquele país de passado
recente aquilo que enforma a Europa: “Uma Raiz, onde se desenvolve uma
cultura estética”.Na
opinião da autora, o verdadeiro passado dos norte-americanos reside na
Europa: “É aí que habitam as suas raízes, mas a América prescindiu desse
passado”.É por isso que Natália Correia afirma a “exterioridade dos norte-americanos por oposição à interioridade dos Europeus”.No
centro do debate, está também a subjugação da Europa aos Estados
Unidos, que a autora denuncia, afirmando que não acredita na “pureza das
intenções dos países empenhados em defender os interesses de outras
nações”, e sugerindo o que, sete anos mais tarde, viria a ser o embrião
da União Europeia: “A Europa devia reunir-se numa cooperação económica”.O
Centro Cultural de Belém dedica hoje um programa a Natália Correia, que
se estende das 15:00 às 19:00, em que será abordada "a intervenção
cívica e cultural" da escritora, e o seu "pensamento inovador". Será
também recordado o processo que lhe foi movido pela publicação da
"Antologia da poesia erótica e satírica", nos anos da ditadura.Natália Correia nasceu nos Açores, em 13 de setembro de 1923. Morreu em Lisboa, há 25 anos, em 16 de março de 1993.