Quando visitou o Corvo pela primeira
vez, David T.P. Soube imediatamente que tinha chegado ao sítio onde
queria ficar. Já passaram cinco anos desde esse momento e dois desde
que este auto-denominado cidadão do mundo passou a chamar a mais
pequena ilha do arquipélago dos Açores de casa, onde hoje se dedica
à arte ancestral de fazer as Fechaduras do Corvo. Apesar da determinação em ficar,
confessa ter sentido algum receio inicialmente por não falar a mesma
língua. Não demorou muito a entender que, no Corvo, há sempre
alguém capaz de fazer a ponte entre o português e o inglês, algo
explicado pela longa história de emigração de açorianos para
países como os Estados Unidos e o Canadá.
Com o passar do tempo, entendeu que a
pequena ilha era mais internacional do que pensava e que os seus
novos vizinhos tinham, afinal, família nos quatro cantos do globo.
“Há muitos emigrantes açorianos e todos têm familiares nalgum
lado, alguns em lugares inacreditáveis”, diz David. Veio a
entender, mais tarde, que essa seria uma das razões para chegarem
pedidos de sítios tão longínquos como a Austrália ou Singapura.
Garante que, na Europa, não resta nenhum país para o qual não
tenha já enviado uma fechadura.
Estima ter demorado cerca de um ano
para dominar a técnica, passada de mão em mão pelos corvinos mais
velhos até ele. Lembra as muitas horas na oficina, passadas a
trabalhar a madeira e a ouvir as histórias de vida de todos os que
por lá passavam, entrelaçadas com as da própria ilha. “As
pessoas falavam-me da cultura, da comida, das suas raízes”, conta
David. Essas conversas levaram-no a prestar mais atenção e a
entender que tinha em mãos algo com mais valor do que poderia ter
antecipado.
“Comecei a reconhecer os desenhos das
fechaduras em todo o lado, em sinais de rua, até em tatuagens feitas
pelas pessoas. Foi assim que me apercebi da sua importância para a
identidade dos corvinos”, revela.
Quis saber mais e descobriu que esta
arte, praticada há milhares de anos, existe em vários sítios da
Europa, como as Ilhas Faroé, onde ainda são usadas em edifícios
antigos. A grande diferença é que lá a tradição está em risco
de se perder para sempre. Já no Corvo, os seus habitantes fizeram
questão de a manter viva ao longo dos anos, algo que David adotou
como sua missão.
O outrora aluno sente a
responsabilidade de ser agora professor e espalhar o conhecimento por
todos os que queiram aprender esta arte, desde os mais jovens
corvinos aos que, tal como na sua primeira vez, chegam à ilha como
visitantes. Com os números do turismo em rota ascendente, são cada
vez mais os que lá chegam e querem viver a cultura local.
“A minha ideia é convidar as pessoas
a abrandar e a conhecer a verdadeira essência do Corvo. Passam algum
tempo na oficina, experimentam a comida e bebida local e eu
conto-lhes um pouco da história”, descreve. Convida-os também a
fazer a sua própria versão simplificada das fechaduras. O
meticuloso processo, que habitualmente demora cerca de um dia a
completar, é reduzido a cerca de cinco minutos e o resultado é um
pequeno íman que cada pessoa pode levar como recordação.
“Recentemente, recebi aqui uma
senhora que tinha vindo à ilha observar aves com o marido. Ficou tão
feliz por fazer a sua própria fechadura. Até fez outra para levar
para a sua mãe também”, descreve David com entusiasmo. “Não é
só uma forma de preservar a tradição, é uma oportunidade de
convidar as pessoas a ligar-se à história, à cultura, à beleza
natural e à essência da ilha. Assim, não estão apenas a comprar
uma parte da história, estão a tornar-se numa parte dela”,
afirma.
Diz sentir-se ainda mais realizado por
fazer algo que dá corpo à palavra “sustentabilidade” em todas
as suas vertentes, da preservação do meio ambiente à qualidade de
vida da comunidade.
Do ponto de vista ambiental, David faz
questão de aplicar o princípio da reutilização. “Uso a madeira
que recupero de casas antigas, equipamentos agrícolas em desuso,
entre outros”, sublinha, afirmando estar determinado em alargar a
sua ação ao nível da preservação, algo ilustrado pela recente
parceria com o Azores Geoparque, de que muito se orgulha. Junta esta
há já mais antiga parceira, a Associação Corvo Vivo, que foi
desde cedo uma peça chave para chegar à comunidade e incentivar
todos os corvinos a juntar-se a esta missão. Com o desenvolvimento
das atividades turísticas em torno das fechaduras, David espera
ainda poder ajudar a combater a sazonalidade e contribuir para a
economia da região ao dar aos turistas algo novo para fazer.
São muitas e grandes ambições, mas
cabem todas nas mãos de David. O que o faz querer continuar esta
arte é a possibilidade de fazer a diferença no mundo. “Espero
contribuir para que as pessoas se liguem à natureza e inspirá-las a
aprender e manter vivas esta e outras tradições”, resume, com a
garantia de manter a porta da oficina aberta para todos os que a
quiserem visitar.