Emanuel Félix: Filho das letras e um dos pais do Urban Sketching na ilha Terceira
5 de out. de 2020, 10:48
— Tatiana Ourique / Açoriano Oriental
Emanuel Félix Lopes da
Silva nasceu em Angra do Heroísmo a 10 de fevereiro de 1959.
Fez formação em
restauro de pintura de cavalete e escultura polícroma tendo exercido funções ao
longo de cinco anos no então Centro de Estudo, Conservação e Restauro de Obras
de Arte dos Açores, em Angra do Heroísmo, onde, paralelamente, se dedicou ao desenho
de arquitetura e ao design. É autor de inúmeros cartazes, catálogos, logótipos,
cartoons, capas e ilustrações de livros.
Autor de diversas
intervenções urbanas e projetos de arquitetura, nomeadamente para câmaras municipais
dos Açores.Tem-se dedicado ultimamente
ao urban sketching, individualmente e no âmbito das atividades do grupo
local, de que é membro e cofundador.
Açoriano Oriental - Cresceu no meio da
literatura, mas foram as artes plásticas que o prenderam. Como foi esta gestão?
Emanuel Félix- Cresci, efetivamente, com
um pai poeta e escritor, no meio de alguns milhares de livros, muitos deles
sobre as diversas formas de arte, mas também de alguns quadros, nomeadamente
desenho e pintura. Mas esta pergunta (e obrigado por isso!) fez-me pensar numa
coisa em que não tinha pensado antes, pelo menos conscientemente: era eu muito
pequeno ainda quando o meu pai e o pintor Rogério Silva fundaram, no rés do
chão da residência deste, na Rua Pêro Anes do Canto, em Angra do Heroísmo, uma
galeria de Arte. Chamava-se "Gávea". Recordo as inúmeras exposições
que nessa época tive a oportunidade de ver e que, reconheço agora, ter-me-ão
despoletado a vontade de riscar e rabiscar que se mantém até hoje.
A.O.- Espera-se que o filho de um escritor
seja também ele escritor ou a aceitação de quem o rodeia foi natural?
E.F.- Não creio que seja necessariamente
assim, não se tratando, neste caso, de uma atividade profissional. Mais
depressa se espera que o filho de um médico seja também ele médico, ou de
um advogado ou de um carpinteiro, etc. Nunca tive jeito para a escrita,
sobretudo para a poesia, (essa faceta herdou-a a minha irmã) e também nunca
senti qualquer tipo de pressão externa ou interna para ser o que quer que
fosse. Tive a sorte de me proporcionarem em pequenos livros para ler, material
de escrita, mas também de desenho, de pintura, etc. Tive o caminho livre para
optar pelo que quisesse.
A.O.- As artes viveram sempre nos
corredores lá de casa?
E.F.- A minha infância e a minha
adolescência foram vividas num ambiente de intensa diversidade cultural. A casa
dos meus pais, não obstante a exiguidade do espaço, foi um verdadeiro ponto de
encontro de escritores, poetas, pintores, escultores, músicos, etc. Ter o
grande Carlos Paredes a tocar na sala para o meu pai, acompanhar o nascimento
de canções de Vasco Pereira da Costa e Carlos Alberto Moniz, ouvir tocar e
cantar a Maria do Amparo, ouvir poesia de Carlos Faria, peças de Teatro do
dramaturgo (e pintor) Norberto Ávila, José Orlando Bretão, textos do Dias de
Melo, lidos pelos próprios, entre muitos outros como o Álamo Oliveira, João de
Melo, Vamberto Freitas, Onésimo Teotónio de Almeida, Marcolino Candeias, Rui
Duarte Rodrigues, ver desenhar lá em casa o José Lúcio Lima, David de Almeida,
José Pádua, privar com o pintor Tomás Vieira, com o escultor Canto da Maia,
entrar em casa e cumprimentar José Fonseca e Costa e José Cardoso Pires,
cruzar-me com Paulo Gouveia, José Manuel Fernandes, referências da Arquitetura,
para citar apenas alguns, não pode deixar de exercer uma forte influência na
minha maneira de pensar e modo de ver o mundo à minha volta.
A.O.-Como é que nasce a paixão pelo
desenho e pela pintura?
E.F- Nasceu assim, um pouco naturalmente
como lhe disse. Sempre andei com os bolsos cheios de lápis e de canetas e
qualquer pedaço de papel que me aparecesse pela frente, nem que fosse a toalha
de mesa de um qualquer restaurante, servia para "exorcizar" o novelo
de rabiscos que se ia formando cá dentro. Organizá-los e ordená-los é que foi
sempre o Diabo!
A.O.-Quais foram as suas exposições mais
marcantes?
E.F.- Comecei por expor alguns trabalhos coletivamente
com artistas locais. Mais recentemente, "espicaçado" pela minha amiga
Verónica Bettencourt, que inclusivamente se encarregou da logística
necessária, expus individualmente em diversos espaços da cidade de Angra e em
Lisboa, na Casa dos Açores. Tive também o gosto de expor na Carmina
Galeria , na Biblioteca Pública Luís da Silva Ribeiro e tenho, neste momento,
uma exposição, sobretudo de esboços, no Centro Cultural e de Congressos de
Angra do Heroísmo.
Há, no entanto, uma exposição que foi
especial para mim, uma vez mais pela mão da Verónica, na galeria da Delegação
do Turismo em Angra, intitulada "Riscos, Rabiscos e Asteriscos". Os
riscos e rabiscos eram meus e do meu filho mais novo, Pedro Félix, na altura
com 8 anos de idade e os asteriscos em alusão aos textos, também expostos,
do meu filho João Félix.
A.O. -Como e quando surgem os Urban
Sketchers?
E.F.- Há pouco mais de uma década, o
jornalista e ilustrador do Seatle Times, Gabriel Campanário, nascido em
Barcelona, após ter publicado desenhos seus como ilustração de uma sua
reportagem (fica a dica!), recebeu uma avalanche de pedidos de desenhadores de
diário gráfico para verem publicados alguns dos seus desenhos. Selecionou e
convidou uma centena deles. O resultado foi de tal forma
"pandémico" que um pouco por todo o mundo surgiram tantos grupos
que resolveu criar estatutos próprios e redigir um manifesto cujo preceituado
devemos fazer por cumprir. Como os Açores ficam no mundo, não podiam ficar fora
deste movimento. Resolvi convidar dois amigos (Manuel Meneses Martins e Rui
Messias) para iniciarmos um grupo e nos podermos registar nacional e
internacionalmente. Tivemos o apoio importante de duas pessoas conhecedoras do
funcionamento deste movimento: da Rosa Chaves, designer de comunicação, vinda
de Torres Vedras onde existe uma grande comunidade de Urban Sketchers e do
Paulo Brilhante, da ilha de São Miguel, que me faz o favor de ser
meu amigo, e é, para mim, um excelente exemplo do que é um
verdadeiro Urban Sketcher, quer pela sua enorme qualidade, quer pela
persistência de desenhar todos os dias.
Paralelamente nascia em Ponta Delgada um
grupo de Urban Sketchers do qual recebi o honroso convite para me
associar. A descontinuidade territorial e a consequente impossibilidade de
participarmos nos encontros com a assiduidade com que acontecem, foi
determinante para que, na Terceira, tivéssemos o nosso grupo.
A.O. -O que é o "Urban
Sketching"?
E.F.- A prática do Urban Sketching
consiste na observação e registo gráfico, no espaço e no tempo, normalmente em
cadernos, no local e com o máximo de fidelidade, de tudo o que nos possa
despertar interesse, se possível contar uma história. Fidelidade aqui, não significa
rigor fotográfico, nem geométrico, nem nada que se pareça. Significa que se
está um carro, uma pessoa, etc. no cenário que queremos desenhar, vai ficar
registado. Ao contrário do que, muitas vezes o nome sugere, os Urban Sketchers
não desenham só edifícios ou nos centros urbanos. Desenhamos nos exteriores,
nos interiores, nas nossas casas, nos espaços públicos, nos encontros do grupo
ou, sempre que nos apetecer, individualmente. Não é por acaso que o lema dos
urban sketchers é "mostramos o mundo, um desenho de cada vez".
A.O. -Atualmente qual é a realidade do
grupo?
E.F.- O grupo, neste momento, vive uma
fase muito interessante. Temos encontros de quinze em quinze dias e temos tido
sempre um número satisfatório de participantes, muito graças ao Manuel Meneses
Martins, que tem agendado e divulgado os sucessivos encontros, organizado e
mantido a página sempre atualizada, à presença sempre que é possível dos seus
membros e ao surgimento recente de novos participantes. Há já algum tempo
tem-nos acompanhado o excelente fotógrafo Fernando Pavão, que, além de nos
honrar com a sua presença, tem feito a cobertura dos nossos encontros e
enriquecido a nossa página com verdadeiras obras de arte.
A.O.- Há talento para esta arte na ilha
Terceira?
E.F.- Há talento na ilha Terceira, como em
qualquer parte do mundo. Há talento em qualquer um de nós. Não é necessário
nenhum requisito especial, apenas gostar de desenhar. Não é preciso ser-se
artista para se ser urbansketcher, a Arte pressupõe uma criatividade que não é
exigida nesta atividade. O diário gráfico é como o diário escrito, não é
necessário ser-se escritor ou poeta para escrever dia a dia num caderno. Todos
têm um traço seu como têm uma caligrafia e todos têm uma maneira própria de ver
as coisas.
A.O.- Costumam interagir com Urban
Sketchers de outras partes do país?
E.F.- Sim. Do país e do mundo. As redes
sociais vieram potenciar esses intercâmbios, dando-nos a possibilidade de ver o
que os outros fazem e mostrar o que andamos a fazer. Há muitos grupos e há
muitas páginas abertas a todos os que nelas queiram partilhar os seus
trabalhos. Além disso, sempre que algum de nós se desloca a um local onde
haja um ou mais grupos, é normal participar dos seus encontros e desenhar em
conjunto. Também tem acontecido juntarem-se a nós quer portugueses, quer
estrangeiros por saberem da nossa existência. Já tive o gosto de desenhar na
Terceira com a Alexandra Baptista e com a Sofia Carolina Botelho, com a Graça
Viveiros e várias vezes com o Paulo Brilhante. A convite do Paulo e da Susana
Teles Margarido, do grupo de desenhadores de rua "Vadios Azores
Sketchers", estive, em janeiro deste ano, na ilha de São Miguel onde
durante dois dias andamos a desenhar juntos, partilhando experiências e vivendo
momentos de muito agradável convívio.
A.O.- Qual (ou quais) o (s) Desenho (s)
que mais o marcou?
E.F.- Marcam-nos sempre os desenhos que
achamos que nos saem bem, assim como os que fazemos associados a momentos
especiais. Mas há um desenho de que gosto especialmente. É de 1979 e representa
o casario à beira do percurso que fazia muitas vezes entre a casa onde vivia e
a casa dos meus avós paternos. Pouco tempo depois havia de ficar muito
destruído em consequência do sismo de janeiro de 1980. Foi talvez meu primeiro
"Urban Sketch" e é o desenho que tenho hoje na capa de perfil da minha
página pessoal do Facebook.
A.O.- Tecnicamente qual é o seu melhor
desenho?
E.F. - O meu melhor desenho será sempre
aquele que diga mais de mim do que do objeto desenhado. Será aquele que pelo
traço, pelas características, pela verdade, se perceba que sou eu quem está do
outro lado.
A.O.- Que sonhos tem para os urban
sketchers da ilha Terceira?
E.F.- Espero e desejo que o grupo urban
sketchers da ilha Terceira continue a crescer no número de membros e de
participantes, que mantenha, pelo menos, a dinâmica que atingiu neste seu
estado, diria, adulto e que, no fundo, seja capaz de continuar a atrair
sobretudo aqueles que dizem erradamente "eu não sei desenhar".