Editora recua e cancela publicação de memórias de Woody Allen após protestos
9 de mar. de 2020, 15:57
— Lusa/AO online
A
juntar aos protestos dos funcionários da editora, que fizeram greve em
Nova Iorque e Boston, como forma de se insurgirem contra os planos de
publicação do livro “Apropos of Nothing” (“A Propósito de nada”, em
tradução livre), conta-se também a reação do filho do cineasta, o
jornalista Ronan Farrow, que se opôs à publicação das memórias do pai
pelo mesmo grupo editorial que publicou em 2019 o seu livro “Catch and
Kill”, sobre uma investigação a casos de abusos sexuais, em que se
inclui o caso de Harvey Weinstein, e à forma como os poderosos escapam à
justiça.Antes ainda da publicação deste
livro, que se tornou um 'best-seller' e um dos livros símbolo do
movimento #MeToo, Ronan Farrow, único filho biológico de Woody Allen e
Mia Farrow, sempre se manteve do lado da mãe e da irmã Dylan Farrow nas
acusações a Woody Allen de abuso sexual.Em
2014, Dylan Farrow, filha adotiva do casal, acusou Woody Allen de ter
abusado sexualmente dela em 1992, quando tinha apenas sete anos, uma
acusação que reiterou em 2018, mas que Woody Allen sempre desmentiu e
que nunca foi comprovada pelas investigações que se fizeram ao caso.No
entanto, este posicionamento de Dylan Farrow, que sempre teve o apoio
do irmão Ronan, obteve também o respaldo de parte da industria
cinematográfica, e Ronan Farrow ameaçou mesmo cortar os laços com a
editora.Numa declaração conjunta, os
funcionários da Hachette afirmaram: "Somos solidários com Ronan Farrow,
Dylan Farrow e os sobreviventes de casos de agressão sexual", escreve o
jornal The Guardian.Em reconhecimento,
Dylan Farrow escreveu no Twitter estar “inacreditavelmente impressionada
e incrivelmente grata pela solidariedade demonstrada pelos
funcionários” do grupo editorial, e acrescentou que a decisão de
Hachette de publicar o livro de Allen tinha sido "profundamente
perturbadora” para si e “uma completa traição” ao irmão.A
fúria pela planeada publicação do livro de Woody Allen aumentou depois
de o diretor executivo da Hachette, Michael Pietsch, ter afirmando, numa
entrevista ao New York Times, que “cada livro tem a sua própria
missão”.“O nosso trabalho como editores é ajudar o autor a alcançar o que se propôs a fazer na criação do seu livro”.Num
e-mail enviado a Pietsch por Ronan Farrow, este afirma que a política
de independência editorial da Hachette “não o isenta das suas obrigações
morais e profissionais como editor de ‘Catch and Kill’ e como líder de
uma empresa chamada a ajudar nos esforços de homens abusivos que querem
branquear os seus crimes”.“Enquanto
trabalhávamos em ‘Catch and Kill’”, que abordava “os danos que Woody
Allen causou à minha família (...) você planeava secretamente publicar
um livro da pessoa que cometeu esses mesmos atos de abuso sexual”.Contudo,
a decisão do grupo editorial de voltar atrás na decisão de publicar a
autobiografia do realizador de “Annie Hall” acabou por se revelar também
controversa, com algumas vozes a levantarem-se contra esta cedência a
pressões e a falarem de censura.Num artigo
publicado no jornal The Guardian, a ex-diretora do PEN club inglês e
ex-editora do Index on Censorship, uma organização sem fins lucrativos
cujo objetivo é promover a liberdade de expressão, Jo Glanville, deixou
claro que “este é o comportamento de censores, não de editores”, e acusa
a Hachette de ter sucumbido à ofensa moral, ao rejeitar publicar o
livro.“Isto é preocupante para escritores e
leitores. Os funcionários da Hachette, que protestaram na semana
passada, claramente pensavam que estavam a fazer o que era moralmente
correto - protestar contra a publicação de um livro escrito por um homem
que foi acusado de abusar da sua própria filha. Mas, como já foi
repetido várias vezes, Woody Allen foi investigado por duas vezes e
nunca foi acusado. Apesar de Dylan e Ronan acusarem Woody Allen, ele não
foi considerado culpado. Nada foi provado. De facto, não há uma razão
aceitável para não publicar o livro de Woody Allen”, escreveu.Jo
Glanville sublinhou ainda que desde criança que vê os filmes de Woody
Allen e gostaria de ler o livro: “Gostaria de ler o seu livro, mesmo que
fosse considerado culpado, porque estou interessada no homem, no seu
trabalho e na sua vida. Não faço verificações da pureza moral e do
registo criminal de um escritor antes de o ler. Teria de retirar das
minhas estantes de livros muitos dos escritores que mais amo, se fosse
começar a aplicar os princípios da equipa da Hachette: T.S. Eliot e
Roald Dahl, para começar, como antissemitas. De facto, a maior parte do
cânone inglês teria de ser rejeitado, nessa base”, acrescentou.Também
o escritor Stephen King já veio criticar a Hachette e manifestar
“desconforto” com a decisão da editora norte-americana de cancelar a
publicação do livro.“A decisão da Hachette
de abandonar o livro de Woody Allen deixa-me muito desconfortável”,
escreveu Stephen King, no Twitter, acrescentando: "Não é ele. Estou-me
nas tintas para o Sr. Allen. É quem será amordaçado da próxima vez que
me preocupa”.