“É possível sermos uma imagem de marca de um produto referenciado a nível europeu” (Com vídeo)
16 de ago. de 2024, 10:27
— Rafael Dutra/Arthur Melo
O que é e em que consiste a agricultura regenerativa?André Antunes
(A.A.): O objetivo é desimpedir o processo fotossintético nas plantas.
Se nós conseguirmos usar tudo o que a natureza nos dá de grátis: a água,
a luz solar, e o céu (...) conseguimos ter um rendimento além de mais
limpo, muito mais eficiente e depender menos de fatores externos. (...) A
ilha de São Miguel tem um potencial imenso para produção nativa, de
erva, de mucilagem. Tem um clima muito bom para produção de leite. (...)
Tentámos ir por aí, analisar profundamente os solos, ver exatamente o
balanço dos solos ( ...) para manter uma produção saudável e evitar os
excessos que muitas vezes levam a quebras de produção, levam à
diminuição da saúde das plantas, e a mais suscetibilidade a pragas e
doenças, que depois levam a mais aplicações de fitofármacos. (...) O
objetivo só pode ser mesmo a rentabilidade e mais dinheiro no bolso do
produtor ao fim do mês. A parte ambiental vem por acrescento (...).Como o próprio nome indica, a agricultura regenerativa pressupõe um processo de regeneração dos solos?A.A.:
Exatamente. A ideia é conseguir produzir o mesmo, ou mais, do que a
agricultura convencional. Muitas vezes também faço a ressalva: a
agricultura regenerativa não tem de ser biológica, nós trabalhamos tanto
com produtores convencionais, e produtores em modo de produção
biológica, mas o objetivo é realmente conseguir este tipo de resiliência
agroambiental.A agricultura regenerativa tem como um dos objetivos reduzir a dependência dos agricultores da fertilização química? A.A.:
Sim. Não necessariamente abolir este tipo de utilização de fator
externo, mas certamente reduzir imenso e mitigar os efeitos da sua
aplicação quando tem de ser aplicada. Até porque os processos de
transição algumas vezes são longos. É um dos erros que aponto à
agricultura biológica, (...) muita gente sente aversão ao processo de
método de produção biológico, porque muitas vezes as transições foram
feitas rapidamente e há uma quebra muito grande de produção, por
fundamentalismos. (...)Que outros objetivos estão aqui subjacentes também?A.A.:
A parte da resiliência financeira, a parte agroambiental, a parte da
qualidade de vida dos produtores. Esta regeneração pretende-se que não
seja só de solos, mas que também seja comunitária. Oiço muitas vezes de
clientes que acompanho que a agricultura passou a ser divertida de novo
para eles. (...) Antigamente era mais um processo de repetição, um
processo quase de rotinas, de fazer todos os anos a mesma coisa. Neste
momento, começam a sentir-se mais como os orquestradores desta orquestra
que é o ecossistema que eles gerem. Sentem um valor acrescentado ao seu
trabalho de cuidadores da terra que lhes foi confiada. Esta parte da
regeneração, é regeneração do próprio agricultor e da comunidade também.
Muitas vezes o que acontece é o produtor que tem estes resultados sente
a necessidade também de partilhar com outros. (...)Quando é que ouviu falar pela primeira vez em agricultura regenerativa?Henrique
Cordeiro (H.C.): A primeira vez que ouvi falar na agricultura
regenerativa foi exatamente quando a Bel Portugal convidou a nossa
empresa a envergar um projeto-piloto em agricultura regenerativa. Na
altura, ainda fiquei um pouco cético àquilo que viria, mas hoje sem
dúvida foi a melhor decisão que tomei. Ainda é um pouco cedo para falar
em vários fatores, mas decorridos os primeiros dois anos só nos fomenta a
vontade de continuar (...).Quais foram as diferenças que já notou na sua exploração e na sua atividade nestes dois anos?H.C.:
O que está a ser mais desafiante é trabalhar com pastoreio planificado e
gerir as nossa pastagens para gerir o pastoreio. Passamos nas estradas e
somente vemos as vacas na erva verde, hoje em dia na nossa empresa não é
só isso: é olhar para os pastos e avaliar que alimentação temos. Há
registos todos os dias de quantos animais estão a fazer o seu trabalho,
desde a sua alimentação e o seu devido impacto animal nas plantas, para
lhes estimular.Coordena há dois anos um projeto-piloto de
agricultura regenerativa na ilha de São Miguel. Como é que está a
decorrer esta experiência?AA: Foi desafiante ao início porque a
comunidade agrícola com que nós começamos a trabalhar foi escolhida pela
Bel, representando cada um uma fação do que era ou do que é a atividade
pecuária de produção de lacticínios na ilha. (...). Mas, todos eles ao
início demonstraram algum ceticismo (...). Viram-se logo no primeiro
ano grandes diferenças. As produções de milho tornaram-se muito mais
homogéneas, houve menos problemas com doenças. A qualidade forrageira
dos milhos, em geral, aumentou e foi por aí que os produtores começaram a
perceber onde nós queríamos chegar, na parte da resiliência
agropecuária e financeira. (...)Tem sido fácil combater estas resistências iniciais que tem encontrado no terreno?A.A.:
Não, não tem sido fácil. É um processo que requer bastante insistência,
mas também respeito para o contexto de cada um. Há pessoas que não
estão preparadas, não vale a pena insistir, (...) nem toda a gente está
preparada e nem toda a gente quer fazer isto. Isto requer da parte do
produtor alguma preparação técnica.Isto implica mudar o ‘chip’ da forma como se trabalha a terra.A.A.:
A minha missão está cumprida em qualquer projeto onde eu trabalho,
quando eu acabo a minha atividade e o produtor fica ele com conhecimento
e não tem de depender tanto de consultas externas (...) e consegue ter
poder de resolução diariamente. (...) O produtor tem de perceber os
mínimos de como é que funciona um solo na sua parte química, física e
biológica, para poder tomar as melhores decisões para a sua produção
agrícola.Neste caso, os bons exemplos que vão começando a surgir,
temos o caso do Henrique, podem servir para quebrar ou enfraquecer estas
resistências, que são perfeitamente naturais.A.A.: A melhor maneira
como um produtor fica convencido é ver um dos seus pares com o qual se
identifica. (...) Se houver um produtor de leite que tem resultados no
campo e que faz um dia aberto na sua exploração em que mostra isso é
muito potente. Aí torna-se num movimento quase cultural que ninguém pode
parar: espalha-se quase como fogo. Qualquer produtor quer fazer o
melhor trabalho, (...) às vezes nunca lhes foi dada a oportunidade de
ver resultados feitos de outra maneira. Quando ele vê noutro, é muito
potente. (...)O Henrique falou no início que a primeira reação foi ceticismo. Como é que foi feita esta mudança de paradigma na sua atividade?H.C.: Primeiramente foi reprogramar a mente. De seguida, passo a passo,
houve uma reorganização da gestão dos solos. Tudo o que é feito nos
nossos solos é registado, temos um 'cartão de cidadão' de cada solo em
que registado todo o custo desde as fertilizações, à silagem de milho
que fizemos lá. Foi um desafio saudável, hoje olho para todo esse
sacrifício e empenho colocado, nesses primeiros dois anos, como uma
porta de futuro. É possível fazer diferente, fazer melhor e temos a
peça-chave que é o solo. O solo reproduz-se basta nós queremos. O
pensamento é que amanhã nós agricultores vamos contribuir para uma
humanidade mais saudável a colocar produtos mais saudáveis nas
prateleiras para os consumidores.Já tem alguns resultados que possa partilhar?H.C.:
Temos resultados já nos primeiros dois anos, são muito agradáveis
(...). Precisamos de amadurecimento, de avaliar e reavaliar tudo o que
está a ser feito. Não quero cair na euforia de que isso é milagroso, não
é. Milagres não existem, existe muito trabalho por trás disso. No prazo
de um ano, um ano e meio, a nossa empresa estará preparada para passar
testemunho daquilo que é a realidade da agricultura regenerativa. (...) A
nível do impacto de rentabilidade, posso dizer que faz uma diferença
brutal aquilo que fazíamos no passado para aquilo que se passa hoje.Falamos há pouco da enorme dependência que a agricultura tem da fertilização artificial. Porque se dá este fenómeno?A.A.:
Fundamentalmente porque é mais fácil, não requer muita racionalização, é
o hábito. (...) Os produtores estão sob uma pressão imensa para
produzir quantidade de leite por vaca, enquanto na verdade devíamos
estar a falar de qualidade e quantidade por hectare. (...) [A
agricultura regenerativa] é um processo complexo e as pessoas, de um
modo geral, fogem da complexidade, gostam de fazer uma coisa mais
simples, de fazer sempre o mesmo. Ao início fazer a mudança de ‘chip’
custa, porque requer mais trabalho, às vezes mais mão-de-obra para
movimentar os animais. No caso do pastoreio é preciso fazer um pouco
mais de movimentação. No caso das fertilizações é preciso fazer
formulações que se fazem na própria exploração. Quem faz e começa a ter
resultados fica viciado, é o que tenho observado. (...)Essa pressão para produzir mais e melhor pode ser um obstáculo?A.A.:
Certamente. (...) É possível produzir mais e melhor (...), o que tem
acontecido muito é que os processos de transição tem sido feitas por
pessoas que não estão capacitadas, muito rapidamente querem passar do
oito ao 80 e leva a quebras de produção. (...)O Henrique deixou-se
levar por esta pressão de ter produzir mais e melhor? Ou há um caminho
diferente que pode ser tomado de forma mais sustentável?H.C.: (...)
Estamos a encontrar na agricultura regenerativa que é possível fazer
mais e melhor. Nesses dois anos mudamos tudo, todos os terrenos da nossa
empresa estão em modo regenerativo. Há praticamente um ano e três meses
que não compramos fertilizantes sintéticos. (...) Estamos a redescobrir
a nossa atividade. (...) Hoje foi possível num hectare e meio dobrar os
dias de pastoreio que era do passado e o custo é menor, completamente
menor daquilo que era, com muito maior rentabilidade.Através da
agricultura regenerativa é possível ter uma alimentação menos dependente
do milho de silagem. Quanto tempo pode levar esta transição, ou seja,
depender menos dos concentrados e do milho de silagem para uma
alimentação mais à base de erva?H.C.: Ainda não tenho capacidade na
nossa empresa de responder quantos anos precisamos de trabalho para
deixar fazer a produção de milho. A silagem de milho é importante, é um
alimento de alto poder energético para os animais. (...) Vamos com
tempo, passo a passo, descobrindo novas culturas, novas misturas, outro
tipo de plantas, outras alternativas. (...)A.A.: O objetivo deste
projeto não é deixar de utilizar os concentrados ou os milhos de
silagem, é sim depender menos deles. (...) Nós estamos a olhar em vários
pontos, um deles é a produção de milho de silagem mais eficiente:
produzir em diversas áreas mais e melhor milho o que pode levar a que se
reduza a área com a mesma produção. Isso é possível e até há um
produtor que produziu muito mais milho de silagem na área que costuma a
fazer. (...) [Mas], se uma pessoa faz mais deve tentar crescer melhor e
não maior. (...)Henrique, também trabalha com um processo de
melhoramento genético na sua exploração. Tem sido possível conciliar
estas duas questões, o melhoramento genético dos seus animais e tirar
partido dele com as práticas da agricultura regenerativa?H.C.: Sim,
sem dúvida. (...) . Entrar na agricultura regenerativa é porque esse
projeto de alteração do tipo de vacas (...) está a correr bem. (...)
Acredito que nos próximos três anos possamos ser uma exploração, uma
empresa produtora de leite nos Açores com 100% de animais cruzados.
(...)Como podemos implementar mudança de paradigma de maneira estável em maior escala e tentando quebrar barreiras?A.A.:
Para mim, o caminho tem a ver com a multiplicação através dos
agricultores, ou seja, ter acesso a algum deste conhecimento e depois
implementá-lo em explorações piloto, sejam elas comerciais ou
explorações só mesmo de demonstração. (...) E, a partir daí haver uma
multiplicação pelos agricultores eles próprios, inclusivamente
tornarem-se consultores e poderem transmitir esse conhecimento. (...)Henrique, tem sentido que através do seu projeto tem suscitado a curiosidade dos seus pares?H.C.:
Sim, principalmente na minha zona, há sempre uma pergunta se está a
correr bem, se vai dar certo. (...) É possível sermos uma imagem de
marca de um produto referenciado a nível europeu. Esse projeto de
agricultura regenerativa nos Açores, em produção de leite, é único na
Europa. (...)