Açúcar, farinha, manteiga, ovos,
fermento. A base da maioria dos doces e bolachas não tem grandes
mistérios mas, na casa de cada avó, o aroma que paira diz algo
diferente. Cheira a um segredo especial que parece ser só delas e
que põe cada neto convencido de não há quem faça igual.
Foi assim, num cenário caseiro que
nasceu a Cooperativa de Artesanato de Santa Maria, entre as casas de
nove amigas. Na altura, as mãos ocupavam-se apenas com a
transformação das lãs das ovelhas marienses em quentes agasalhos.
A dada altura, as nove amigas - mais o senhor que lhes fornecia a lã,
que a elas se juntou como sócio, para ser o décimo elemento em
falta para poder abrir a cooperativa - perceberam que estava na
altura de crescer e levar o trabalho para fora de casa. Entre elas
estava Conceição Chaves, a grande impulsionadora do projeto:
“Devemos-lhe muito por ter sido a nossa promotora, mesmo perante as
dificuldades”, descreve Eduarda Bairos, uma das mulheres que hoje
dá voz e braços ao trabalho feito na cooperativa.
Passados 35 anos desde a sua fundação,
a equipa cresceu e conta hoje com 22 elementos, na sua grande maioria
mulheres. As coisas já são mais profissionais, já há sede
própria, mas o espírito familiar mantém-se. É pela barriga que a
cooperativa tem conquistado cada vez mais admiradores. À tecelagem e
trabalhos em lã de ovelha e linho juntou-se a panificação e o
fabrico de doces tradicionais, todos com técnicas e segredos
entregues em mãos, de geração em geração.
Entre o vasto catálogo da cooperativa,
o mais procurado é o biscoito de orelha, um doce singular em todos
os aspetos, até no seu nome. Eduarda Bairos explica a sua origem:
“Fazemos um triângulo e depois, como cortamos os cantinhos,
dizemos que cortamos às orelhas”. Destaca algumas das razões para
que este seja o eleito como preferido. “Talvez seja o produto mais
valorizado, não só pelo seu sabor mas também por ser mais
trabalhado e por ser muito, muito antigo”, explica. “Em qualquer
festa que haja aqui em Santa Maria, seja casamentos, festas
religiosas ou quaisquer outras, o biscoito de orelha está sempre à
nossa mesa. É um produto típico e só nosso, não se faz em mais
lado nenhum”.
Eduarda Bairos assegura que a procura
não é só nas redondezas. “Seja emigrantes ou outros visitantes,
veem nos bater à porta e perguntar se é cá que se fazem os
biscoitos de orelha”. Embora não organizem visitas guiadas na
cooperativa, gostam de deixar as pessoas entrar e espreitar o
processo o que, defende, é também uma forma de valorizar o produto.
Embora sejam os mais procurados, os
biscoitos de orelha não são os únicos a fazer-nos olhar, e
degustar, a tradição mariense. A seu lado nas festas é habitual
encontrar outros biscoitos, como os encanelados e as júlias. Nos
impérios do Espírito Santo, é tradição o mordomo incluí-los
numa caixa, junto com os biscoitos de orelha, para oferecer aos
ajudantes da festa.
No dia a dia, o que nunca falta é o
pão fresquinho, distribuído por todas as freguesias da ilha em
supermercados, mas não só. “A minha colega sai daqui pelas 7
horas da manhã e, no regresso à nossa freguesia, Santo Espírito,
faz a distribuição pelas casas dos idosos, para quem tem mobilidade
reduzida ou não tem transporte. Estamos na freguesia mais dispersa
da ilha, o que faz com que as casas estejam mais espalhadas também,
por isso nem sempre as pessoas conseguem vir até nós. Assim, vamos
nós até elas, para que todos tenham pão fresquinho”.
Esse espírito de familiaridade é
mantido além mar, pelos emigrantes que, ao voltar à ilha, não
hesitam em procurar as iguarias de que têm mais saudades, entre elas
o pão de trigo, a massa sovada e, claro, os próprios biscoitos. “A
casa é deles também”, afirma Eduarda Bairos. Têm recebido cada
vez mais visitas de turistas, tendo-se tornado numa paragem
obrigatória para conhecerem as tradições marienses.
Chegou a altura de estas tradições
conhecerem novas paragens, a começar pela participação na feira de
produtos açorianos, realizada em Lisboa. Eduarda Bairos diz sentir
honra e responsabilidade por ir representar a ilha, acompanhada de
Conceição Chaves. “Somos mulheres de garra e força, estamos
muito animadas por Santa Maria estar lá representada”, afirma.
Quanto à possibilidade de inovar,
Eduarda Bairos explica que nunca considerariam mudar nada nas
receitas tradicionais, desde os ingredientes da terra que fazem
questão de usar aos próprios métodos, mas há alguma margem para
inventar com a criação de outros produtos. Exemplo disso é a
queijada de meloa de Santa Maria, um produto sazonal, para respeitar
a sua época.
Estejam a tecer ou a amassar, o
ingrediente secreto é o carinho familiar e o gosto em continuar um
trabalho sem fim, que mantém viva a cultura mariense e o carinho de
cada mãe e avó que, a cada dia, juntava os netos e filhos à mesa,
com um biscoito de orelha e dois dedos de conversa para dar.