Documentos inéditos revelam relação cúmplice entre Natália Correia e António Sérgio
24 de mar. de 2018, 12:07
— Lusa/AO Online
“Entre a Raiz e a
Utopia (Escritos sobre António Sérgio e o Cooperativismo)”, editado pela
Ponto de Fuga, inclui três datiloscritos inéditos escritos por Natália
Correia sobre António Sérgio, maioritariamente em 1983, aquando do
centenário do nascimento do pensador, pedagogo, ensaísta e
cooperativista.Esta
edição, resulta de uma pesquisa na biblioteca e arquivo público de
Ponta Delgada, onde estão depositados documentos da escritora açoriana,
entre os quais datiloscritos, manuscritos e recortes de jornais, explica
a escritora e investigadora científica Ângela de Almeida, que assina a
introdução e faz as notas do livro. Como
resultado dessa pesquisa, foram também incluídos neste volume três
artigos de Natália Correia sobre cooperativismo, publicados em jornais,
acrescenta Ângela de Almeida, que defendeu uma tese sobre a simbólica da
ilha e do Pentecostalismo em Natália Correia, sob orientação de Urbano
Tavares Rodrigues.Os
documentos constantes de “Entre a raiz e a utopia” correspondem a pelo
menos 12 anos de uma relação de “profunda cumplicidade e de luta pelos
ideais universais, vivida entre poeta e pensador, na senda do
cooperativismo e da paz”, diz a especialista.Natália
Correia e António Sérgio conheceram-se em 1946 – a jovem poeta com 23
anos e o pedagogo com 63 – e aderiram ao Movimento de Unidade
Democrática (MUD).No
mesmo ano, António Sérgio foi admitido na Cooperativa Fraternidade
Operária, e Natália Correia ingressou, no ano seguinte, passando a fazer
parte de um grupo de intelectuais, entre os quais se contavam António
Pedro, Adolfo Casais Monteiro e Ramada Curto, assim como “outros vultos
maiores das letras que se opunham à ditadura de Salazar”, segundo as
palavras da própria Natália Correia.Mas
a grande cumplicidade que aluna e mestre criaram e desenvolveram nos
anos de ditadura em Portugal ganhou força em 1948, na sequência da
proclamação, pela Assembleia Geral da ONU, da Declaração Universal dos
Direitos Humanos.Além
disso, partilhavam vivências e ideais: foram duramente perseguidos,
almejavam a liberdade e sentiam-se atraídos pelo cooperativismo.Ambos
lutaram pela candidatura de Norton de Matos à Presidência da República
e, dez anos mais tarde, participaram na candidatura de Humberto Delgado,
cuja derrota foi “fatal para o ânimo de António Sérgio, que esmoreceu
gradualmente a partir desta deceção”, descreve a poeta.Outro
episódio de relevo contido neste volume é a primeira visita de Natália
Correia aos Estados Unidos da América, em 1950, cujos motivos são
explicados num dos documentos inéditos agora publicados.Com
apenas 26 anos, a poeta partiu “levando uma missão” de que o mestre a
incumbira: pôr-se em contacto com Norman Thomas, líder do Partido
Socialista norte-americano, com quem António Sérgio mantinha relações,
para tentar que este despertasse o interesse da opinião pública
norte-americana para a causa da resistência ao fascismo.A
escritora contou como encontrou um “desiludido”, que lhe deu uma
resposta “desanimadora”: “Diga ao nosso Sérgio que aqui o socialismo é
pregado no deserto. Para mim, acabou-se. Não posso dar-lhe qualquer
espécie de colaboração”.Natália
Correia descreve também a forma como António Sérgio mantinha uma
relação fraterna com muitos jovens que o rodeavam, porque “tinha o
condão de se fazer amar”.“Tão
elegante, tão atentamente estético era António Sérgio em casar os seus
contrários num corpo de ideias inteligentemente organizado, que nós,
jovens seduzidos pelo fulgor multidisciplinar do seu discurso, nele
víamos a panaceia para todas as injustiças que nos revoltavam”, foi como
Natália Correia definiu o ensaísta e pensador, que escolheu para
mestre.O
Centro Cultural de Belém dedica hoje um programa a Natália Correia, que
se estende das 15:00 às 19:00, em que será abordada "a intervenção
cívica e cultural" da escritora, e o seu "pensamento inovador". Será
também recordado o processo que lhe foi movido pela publicação da
"Antologia da poesia erótica e satírica", nos anos da ditadura.Natália Correia nasceu nos Açores, em 13 de setembro de 1923. Morreu em Lisboa, há 25 anos, em 16 de março de 1993.