Dizer que há recursos para tudo é “mentir e desresponsabilizar as pessoas”
Covid-19
10 de nov. de 2020, 11:38
— Lusa/AO Online
“Em
pandemia é uma ilusão acharmos que temos os recursos ideais. Nunca
vamos ter. Se perguntar se tenho os recursos ideais para o programa de
ECMO [Oxigenação por Membrana Extracorporal], não. Mas também não temos
para cuidados intensivos, nem para a urgência (…). Não podemos ter mais
procura do que oferta. Dizer a verdade é uma forma de responsabilizar as
pessoas”, refere o especialista do Hospital de São João Roberto Roncon.Em
Portugal existem três centros hospitalares com resposta ECMO, a tal
técnica que permite substituir temporariamente a função do coração e dos
pulmões através de um circuito extracorporal, e que foi introduzida no
país há 10 anos por causa da gripe A.Com a
covid-19, esta “espécie de tecnologia de ponta”, que era encarada como
“técnica de resgate de última linha”, começou a ser aplicada “mais
precocemente” em doentes que se encontram em cuidados intensivos.O
Hospital de São João já “resgatou” doentes dos Açores referenciados
para ECMO e Lisboa, onde quer o Hospital São José, quer o Santa Maria
têm reposta ECMO, já “veio buscar” ao Norte. Na sexta-feira, 13 das 14
camas ECMO (para todas as patologias) do São João estavam ocupadas.Em
entrevista à agência Lusa, o coordenador do Centro de Referência de
ECMO do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ) é claro e
direto sobre a capacidade de resposta dos hospitais: “Dizer que é fácil e
que vamos responder a todas as solicitações é contar a história da
carochinha. Estamos num contexto pandémico”.E
nessa lógica de limitação de recursos a ECMO não é exceção. “Não posso
garantir que iremos ter recursos para todos os doentes. Isso é mentir.
Mas considero aceitável o tipo de resposta ECMO que estamos a dar quando
comparada a países como a França, Alemanha, Espanha. E penso que a
resposta que temos no Norte do país é muito aceitável”, refere Roberto
Roncon.A ECMO, uma espécie de circuito de
diálise, que no caso da covid-19 grave faz a substituição da função
pulmonar, é acionada quando o tratamento convencional que inclui o
ventilador não é suficiente.O tempo que um
doente necessita dessa técnica é “muito variável, mas na covid-19 é
elevado” e esse, admite Roberto Roncon, “também é um dos fatores de
preocupação” atuais porque “é raro o doente que precisa de menos de
duas, três semanas de ECMO e existem casos de um ou dois meses”.“Em termos de consumo de recursos isto é brutal”, admite.Segundo
Roberto Roncon, para garantir resposta a solução está na rede e não na
generalização, até porque “os países que tentaram generalizar o ECMO
tiveram resultados péssimos”.O médico
lembra as razões clínicas e económicas que sustentam a tese de que “é
preferível ter um centro que faz 100 casos por ano do que três centros
que fazem 30”.“A primeira razão clínica
para não se generalizar é que não se deve levar a cabo uma técnica
quando não se dispõe das especialidades cirúrgicas capazes de resolver
as complicações. Ou seja, a razão é a segurança do doente. Para diminuir
a taxa de complicações, é preciso ganhar experiência”, descreve.Entre
outros aspetos, em causa está o facto deste circuito extracorporal
exigir a introdução de cânulas (espécie de cateteres) de grande calibre
no doente. Perante complicações, são necessárias cirurgias, como as
cardíacas e as vasculares, que não existem em todos os hospitais.“Pessoas
com experiência fazem com que a taxa de complicação diminua. Faz
sentido concentrar equipas e experiência (…). Mas um doente covid-19
grave vai morrer porque está num hospital que não tem ECMO? Ideia
errada. Desde há cerca de 10 anos existe a miniaturização [máquinas
compactas e portáveis] dos circuitos extracorporais. Pode-se ir buscar
um doente a outra unidade hospitalar e levar a um centro de ECMO”,
descreve.É o que acontece em Portugal. Na
semana passada, quando o Hospital de Matosinhos referenciou uma doente
para ECMO, o São José “veio” buscá-la. “Curiosamente
no dia seguinte o São João já teria mais folga. Mas se temos o
privilégio de ter um SNS em que estas questões são fáceis de enquadrar
(…), porquê correr o risco de esperar pelo dia seguinte? Nos Estados
Unidos, por exemplo, não há rede e cada hospital tenta ser
autossuficiente”, sustenta Roberto Roncon.Critico
de expressões como “milagre português” ou pragmático na análise sobre
um “virar de página súbito do desconfinamento” entre a chamada primeira
vaga e a aquilo que agora vê como um “planalto”, o especialista em
medicina interna e medicina intensiva do CHUSJ responde à Lusa apontando
o que acha ser necessário que as pessoas entendam.“Para
nós, um doente covid-19 não é um doente ‘vip’ (…). A população
portuguesa pode continuar a contar connosco [profissionais de saúde].
Estamos cansados, mas não vamos desistir. As pessoas não vão ficar para
trás. Já a outra parte dos recursos [os hospitais] responde quanto menos
internados tiver e quanto menos internados, menos cuidados intensivos e
menos necessidade ECMO”, frisa.Professor
auxiliar na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Roberto
Roncon considera que “é preciso cuidado com o discurso covidocêntrico”
porque “a confiança para retomar a economia não se constrói só com
discurso político, constrói-se com saúde pública controlada”.Quanto
ao chamado negacionismo que se espelha em movimentos anti-máscaras,
entre outros, Roncon, “sem desvalorizar”, considera que “não se lhes
deve dar protagonismo”.“Não temos um
problema significativo de negacionismo em Portugal, temos é pessoas
desesperadas. Sempre que falo com alguém que tenta negar alguma
evidência científica faço sempre o mesmo convite: passar visita na minha
unidade sem máscara. Até agora ninguém aceitou”, conclui.