Autor: Lusa/AO Online
“Descobri então que povo não era uma palavra vazia de significado”, repetida até à exaustão pela propaganda do regime, lembrou, num ensaio, o escritor chinês Yu Hua, que tem duas obras publicadas em Portugal.
“Em Pequim, andava-se de metro ou autocarro sem pagar. As pessoas sorriam umas para as outras. Vendedores ambulantes ofereciam refrescos aos manifestantes; aposentados doavam parte das suas magras economias aos grevistas. Numa demonstração de apoio, os carteiristas abstinham-se de roubar”, descreveu.
Iniciado por estudantes da Universidade de Pequim, o movimento pró-democracia alastrou-se a toda a sociedade chinesa e, em meados de maio, o Governo decretou a lei marcial em Pequim.
Inspirada pelos acontecimentos na capital, que lhe chegavam via BCC, através de um rádio de ondas curtas, a romancista Zhang Lijia organizou um protesto com cerca de 300 operários na fábrica de produção de mísseis onde trabalhava, em Nanjing, na costa leste da China.
"Sob o olhar dos líderes da fábrica, os operários desfilaram, como se caminhassem para uma batalha. Na frente, erguendo uma bandeira vermelha, tive uma sensação de libertação nunca experimentada antes", descreveu à agência Lusa a escritora, agora radicada em Londres.
O movimento da Praça Tiananmen foi esmagado na noite de 03 para 04 de junho de 1989, quando os tanques do exército foram enviados para pôr fim a sete semanas de protestos.
O número exato de pessoas mortas continua a ser segredo de Estado, mas as "Mães de Tiananmen", associação não-governamental constituída por mulheres que perderam os filhos naquela altura, já identificaram mais de 200.
Natural de Pequim e fluente em inglês, o chinês Jiahao nasceu precisamente em 1989, mas foi só quase três décadas depois, quando estudava nos Estados Unidos, que descobriu o que se passou.
“Só então entendi porque punham os meus colegas uma expressão que era um misto de curiosidade e cautela, quando me perguntavam o que eu achava do 04 de junho”, lembrou à Lusa.
Jiahao teve que pesquisar no Google - motor de busca bloqueado na China -, para saber do que se tratava, ilustrando o sucesso do Governo chinês em censurar qualquer informação relativa ao episódio.
“A China tem sido notavelmente bem-sucedida em eliminar a memória” sobre a repressão de há 33 anos, disse Louisa Lim, investigadora que escreveu um livro sobre o movimento, à Lusa.
A autora do "The People's Republic of Amnesia: Tiananmen Revisited", publicado em 2014, diz mesmo ter ficado "chocada com o nível de ignorância sobre as mortes dos estudantes chineses em 1989".
A censura, o sucesso económico das últimas décadas, e a educação “patriótica”, promovida após o massacre, serviram para desviar a atenção das novas gerações chinesas para as preocupações económicas, em detrimento das políticas.
Muitos jovens chineses têm outras prioridades, "mais tangíveis", como "encontrar emprego ou comprar uma casa", contou Lim.
A China é hoje a segunda maior economia do mundo e principal potência comercial do planeta, tendo-se convertido num poder capaz de disputar a liderança global com os EUA.
Chen Xi, 28 anos e gestor de compras num hospital de Pequim, diz que Tiananmen "pertence à geração dos seus pais."
"A política não me interessa muito", aponta.
Desde os acontecimentos de 1989, um contrato social implícito foi selado entre o Partido Comunista e o povo chinês: o partido mantém uma autoridade indisputada e os privilégios da elite dominante e, em troca, assegura o crescimento económico, melhoria dos padrões de vida e elevação do estatuto global do país.
"Os
protestos pró-democracia da Praça Tiananmen foram uma libertação única
das paixões políticas do povo chinês”, descreveu Yu Hua. Essas paixões
foram “depois substituídas pela devoção ao dinheiro”, resumiu.