Debate “nasceu” em 1993 com Cavaco em queda e discurso de 43 páginas
Estado da nação
23 de jul. de 2020, 11:33
— Lusa/AO Online
O
país vivia, então, em maioria absoluta do PSD, as economias europeias
começavam a ser afetadas por uma crise, e a popularidade de Cavaco
Silva, primeiro-ministro, davam os primeiros sinais de quebra, após oito
anos de poder.Este tipo de debate foi
justificado como uma forma de fazer um maior escrutínio parlamentar à
atividade do executivo, e inspirado, em parte, pelos discursos do estado
da União dos presidentes dos Estados Unidos, numa altura em que eram
escassos os debates com o chefe do Governo na Assembleia da República.Alterado
o regimento da Assembleia em 1992, depois das queixas dos partidos da
oposição de que Cavaco ia poucas vezes ao parlamento, o primeiro debate
do estado da nação, porém, só aconteceu no ano seguinte, em 01 de julho
de 1993.Cavaco Silva criticou o
"pessimismo decadentista de alguns políticos com responsabilidades" por
quererem incutir na sociedade uma "descrença fatalista".“Aqueles
que se recusam a reconhecer a transformação positiva de Portugal" e
fazem "cenários negros, miserabilistas ou fatalistas, geralmente por
motivos de mero jogo político", estão a cometer "um ato de miopia",
acusou.O chefe do Governo usou números e
mais números, fez comparações estatísticas entre 1992 e 1985, ano em que
o PS estava no Governo em aliança com o PSD, no famoso Bloco Central. O
número de jovens a estudar no ensino superior, por exemplo, duplicou.O
discurso inicial de Cavaco tinha 43 páginas e a primeira discussão
sobre o estado da nação ocupou toda a tarde de trabalhos na Assembleia
da República, das 15:25 às 20:50, mais de cinco horas.O
primeiro comentário do PS coube ao deputado António Almeida Santos que
atirou uma "farpa", entre aplausos dos deputados socialistas: "V. Ex.ª
acabou de nos ler um discurso cujo tamanho só é ultrapassado pela
deceção. Diria que, se a crise que assola o país fosse de palavras,
teria morrido neste momento."Cavaco
responde com ironia e prestou-lhe “a homenagem”: “Ninguém consegue ser
superior ao sr. deputado Almeida Santos em termos de manipulação das
palavras”, a “tentar enganar, às vezes, a audiência.”Mas
a resposta de fundo, porém, foi dada pelo deputado António Guterres,
secretário-geral do PS há três anos e que estava a dois das legislativas
que deram a vitória aos socialistas.Cavaco, sintetizou Guterres, estava “duplamente derrotado”, perante “si próprio e perante o país”.“Em
primeiro lugar, pelo contraste gritante entre a realidade atual e o
que, até há bem pouco tempo, nos prometia; entre as expectativas que
criou com leviandade para se fazer eleger e o sentimento generalizado de
frustração que, boje, aflige os portugueses. (…) Mas derrotado, também,
por ter perdido as duas principais batalhas da vida portuguesa: a
batalha económica e social do emprego e a batalha política da
transparência”, disse.António Guterres
acusou ainda o primeiro-ministro de ter esgotado “o crédito que os
portugueses lhe manifestaram", demonstrando que "só sabe navegar com o
vento a favor"."Ainda tem dificuldades em admitir que se engana, mas, seguramente, já começou a ter dúvidas", ironizou.O parlamento em 1993 era muito diferente do atual e os protagonistas também.Na
extrema esquerda do hemiciclo sentava-se Mário Tomé, militar de Abril e
eleito pela UDP, partido mais tarde na origem do Bloco de Esquerda.Do
lado oposto, Manuel Sérgio, professor universitário, fazia o seu único
mandato pelo Partido da Solidariedade Nacional (PSN), o chamado "partido
dos reformados".No hemiciclo sentava-se ainda Diogo Freitas do Amaral, que nessa altura já tinha abandonado o CDS, e era deputado independente. No
PSD, o líder parlamentar era Duarte Lima, mas neste debate intervieram
também Rui Rio (atual presidente do partido) e José Pacheco Pereira,
vice-presidente da bancada.Na bancada do
CDS sentavam-se Adriano Moreira, mas também um jovem deputado, António
Lobo Xavier, que elogiou o “bom hábito democrático” do debate do estado
da Nação, e sublinhou alegados excessos do cavaquismo em 1993: “as
forças de bloqueio, foi a querela inútil e perigosa com o sr. Presidente
da República [Mário Soares], foi a proeza extraordinária de por os
magistrados em greve, foram as crispações a propósito da corrupção, do
segredo de Estado.”À esquerda, o PCP teve
como figuras do debate Carlos Carvalhas, que já sucedera a Álvaro Cunhal
como secretário-geral do PCP, mas também Octávio Teixeira e João
Amaral, que mais tarde se tornou crítico. Carvalhas,
por exemplo, questionou o primeiro-ministro sobre se reconhecia ou não
que, “fruto de uma política errada e injusta, há hoje milhares de
reformados numa situação dramática” ou que “há hoje milhares de jovens
que não encontram saídas profissionais”.E
Freitas do Amaral perguntou se Cavaco poderia indicar “quais são as
grandes linhas da reforma do Estado providência que as circunstâncias
impõem”, anotando a crítica feita ao Governo de que “existe um excessivo
economicismo nas políticas sociais”.O
debate durou mais de cinco horas e só terminou quando o presidente do
parlamento, Barbosa de Melo, elogiou “esta nova experiência
parlamentar”.O regimento da Assembleia da
República estipula que o debate do estado da nação se faça "numa das
últimas 10 reuniões da sessão legislativa", que é "iniciado com uma
intervenção do primeiro-ministro sobre o estado da nação, sujeito a
perguntas dos grupos parlamentares, seguindo-se o debate generalizado
que é encerrado pelo Governo", transmitidos em direto pela ARTV, o canal
do parlamento.Este tipo de debate não
está em questão, numa fase em que o PSD propôs e o parlamento está a
discutir reformas de funcionamento que passam pela redução do número de
debates com o primeiro-ministro. Ao longo
dos últimos anos, passaram pela sala das sessões de São Bento para
discutir o estado da nação seis primeiros-ministros, António Guterres,
José Sócrates e António Costa, do PS, e Cavaco Silva, Durão Barroso e
Pedro Passos Coelho, do PSD.Este figurino
perdeu, porém, relevo após novas mudanças no regimento em 2007 e com a
introdução, primeiro, dos debates mensais e depois dos debates
quinzenais, em que os partidos vão confrontando, de duas em duas
semanas, o primeiro-ministro com os temas políticos de atualidade, o
mesmo que está agora a ser questionado pelo PSD e pelo PS.O
debate sobre o estado da nação com o primeiro-ministro, António Costa, o
primeiro da XIV legislatura que começou em 2019, está agendado para as
09h30 (menos uma nos Açores) do dia 24 de julho.