"Covid-19 coloca a nu o estado lastimoso da Região e do País no que toca aos investimentos nas pessoas, na cultura que tudo cimenta"

A única editora livreira do Pico sente os efeitos negativos da pandemia, mas este é apenas mais um obstáculo que têm de enfrentar. O casal Sara Santos e Carlos Alberto Machado criou, em 2011, nas Lajes do Pico, a Companhia das Ilhas, um investimento num ramo difícil e pouco acarinhado, como ambos afirmam. O projeto resiste à ausência de "medidas de apoio aos editores" nos Açores.


Autor: Célia Machado /AO Online

A Companhia das Ilhas nasceu em 2011, em traços gerais, como tem sido esta caminhada?

A Companhia das Ilhas nasceu em tempos difíceis, até parecia que o mundo poderia acabar por um desses dias. Porquê? Estávamos em 2011, em maio, e Portugal entrara num “período negro”: crise, austeridade, troika. Digamos: não foi um começo fácil. Diziam-nos: então, em plena crise, com despedimentos em massa, empresas a fecharem portas, insegurança e, até, medo, vocês, no meio do Atlântico, numa ilha de menos de 15 mil habitantes e numa vila com não mais de 300 pessoas, criam uma editora livreira? Pois foi. E talvez, dizemos nós agora, tenha sido essa a nossa primeira marca identitária: acreditar que era possível “fazer coisas” em meio da descrença generalizada


À partida já sabia que não seria fácil manter uma editora independente, com a dimensão que tem e sediada numa ilha como o Pico, com baixa densidade populacional, com poucas iniciativas literárias. Se fosse possível voltar atrás, teria avançado com a Companhia das Ilhas?

Hoje, passados mais de 200 títulos diferentes é legítimo que se pergunte: valeu a pena, vale a pena continuar? Genericamente, sim. Mas é evidente que como não somos como aquele senhor que não tinha dúvidas e raramente se enganava, digamos que não faríamos tudo do modo como fizemos, nos mesmo ritmos, etc. E com a consciência do que somos e do que podemos fazer no contexto açoriano e nacional, encaramos o futuro próximo de modo diferente.

A pandemia de Covid-19 afetou o mundo; ainda afeta... No caso particular da sua editora, qual o impacto?

A Covid-19 e a pandemia apenas vieram colocar a nu o estado lastimoso da Região e do País no que toca aos investimentos nas pessoas, na cultura que tudo cimenta. “Tapam-se buracos”, aumenta a demagogia e o populismo, os governos fingem que gostam muito de livros e dos autores, etc. No caso particular dos Açores, nem uma só medida de apoio aos editores. Continuamos sem uma política cultural, ativa e participada, nos domínios do livro e da leitura, multissetorial, que abranja a Escola, a edição, a distribuição, a promoção, etc, etc. Este ano já publicámos 14 títulos diferentes, em junho atingimos 200 títulos, e vamos continuar, embora a um ritmo menor (a nossa média anual tem sido de 20 livros, quase 40 em 2019): até ao fim do ano contamos publicar mais 5 ou 6, entre eles o início da Obra Completa de Urbano Bettencourt, a continuação da Obra Completa de Vitorino Nemésio (que o município da terra que viu nasce o grande poeta, o da Praia da Vitória, não quis patrocinar), e nos seguintes, a continuidade das Obras Completas de Álamo Oliveira e de José Martins Garcia.
Por causa da Covid-19, muitas pessoas viram-se obrigadas a permanecer em casa. Esta teria sido a melhor altura para o livro ganhar um papel de maior relevância mas não o conseguiu. Não há como "roubar" algum espaço às tecnologias de informação?
Há cada vez menos leitores, menos livrarias no país, as dívidas das livrarias têm largos meses e vão aumentando. As pessoas ficaram em casa a ver televisão e agarradas às “redes sociais”: mais do mesmo, portanto. O digital e o papel não são antagónicos. Quem lê, lê. Ponto.

A venda de livros é mais rentável, no caso da Companhia das Ilhas, pela internet ou presencialmente, em feiras e outros eventos de promoção das obras?

A Companhia das Ilhas cresceu nestes nove anos pela qualidade do seu catálogo e por uma gestão de independência face aos poderes instituídos e ao chamado mercado livreiro, a distribuição dos seus livros é feita diretamente para as livrarias, sem qualquer tipo de intermediários. Hoje, está presente nos maiores grupos livreiros online e na generalidade das livrarias independentes, em todo o território nacional. Este é também um motivo de atração para muitos autores que querem ver os seus livros com padrões editoriais de qualidade acima da média, graficamente singulares e num contexto de proximidade com o que de melhor se faz em Portugal, beneficiando ainda de uma distribuição cuidada e criteriosa. O equilíbrio financeiro é fundamental, pois todos sabemos que a grande maioria dos projetos editoriais de pequena e média dimensão no país faliu por evidentes desajustes entre a sua identidade editorial e os anseios de (desmedida) notoriedade.

A editora tem um rol de autores publicados bastante diversificado.

Os “cartões de apresentação” de uma editora são sempre os seus autores: são mais de 120, não contando com os de 7 antologias. Podemos destacar alguns que os leitores mais facilmente reconhecerão: António Cabrita, Carlos Alberto Machado, Leonor Sampaio da Silva, Luiz Fagundes Duarte, Nuno Dempster, Onésimo Teotónio Almeida, Rui Pina Coelho, Urbano Bettencourt, Maria Graciete Besse e Vitorino Nemésio. Mas a editora também se orgulha de ter pela primeira vez publicado alguns autores (ou ter dado continuidade às suas primeiras obras), como Leonardo Sousa, Maria Brandão, Nuno Costa Santos ou Rosalina Marshall.

O futuro do livro assusta-o?

Os livros e a leitura são domínios minoritários e o Estado tem de intervir para que os editores sobrevivam. Em muitos países da Europa, em especial os do norte, os governos têm políticas permanentes e sistemáticas de apoio aos editores, comprando antecipadamente centenas de livros para distribuição pela bibliotecas públicas, cumprindo assim dois objetivos: oferta maior e mais diversificada para a leitura pública, garantia da vida financeira das editoras. Por aqui, zero! Quanto ao futuro, não temos muitas esperanças nas instituições, dos governos ou outras. Acreditamos no nosso trabalho rigoroso e intelectualmente honesto, acreditamos nos leitores fiéis que compram e leem os nossos livros, por gosto e porque consideram ser um dever de solidariedade. Deixámos de concorrer a apoios estatais dominados por lógicas abstrusas e de amiguismo bacoco. Denunciaremos os abusos e as represálias do Poder, tenha a cor que tiver, por dizermos publicamente coisas incómodas. Não temos de pagar favores a ninguém. Continuamos como queremos, acabaremos quando quisermos.