Com os novos cabos submarinos vamos ter o maior laboratório em tempo real do Atlântico

13 de mar. de 2023, 06:53 — Lusa/AO Online

Existem correntes de opinião muito fortes sobre a instalação da nova rede de cabos submarinos nos Açores, sendo importante clarificar este assunto que levanta múltiplas questões. Comecemos por olhar para o modelo atual, que está no fim do seu prazo de vida útil. Como tem funcionado este modelo?Temos neste momento um sistema de cabos submarinos que utiliza dois cabos internacionais: na ligação Lisboa/São Miguel o cabo Columbus III, que tem o seu fim de vida útil planeado para 2024; temos também um cabo a ligar os Açores à Madeira, que tem o fim de vida útil em 2028 e mais um cabo internacional, o Atlantis II, que faz a ligação Madeira/Lisboa. Esta é uma configuração em triângulo, que tem amarrações em Carcavelos e em São Miguel  - na Praia das Milícias e em Santa Cruz da Lagoa - que vai também à Madeira, seguindo para Lisboa. Existe aqui uma redundância, para que não haja qualquer tipo de corte de conectividade, até porque não raras vezes nós estamos a operar ou na ligação via Madeira ou na ligação direta ao continente, por via de necessidades de manutenção ou de outras operações que são feitas nos cabos. Relativamente ao novo modelo, ele prevê uma ligação direta do continente à ilha Terceira e desta a São Miguel, mantendo-se a ligação indireta do continente a São Miguel, via Madeira. Como é que foi tomada a decisão de o configurar desta forma?Recordo que a Região integrou um grupo de trabalho presidido pela Anacom (Autoridade Nacional de Comunicações) em maio de 2019. Este grupo reuniu sete vezes entre julho de 2019 e dezembro do mesmo ano e estava mandatado pelo Governo da República para estudar a nova solução CAM (Continente/Açores/Madeira) na ligação por cabos submarinos, tendo sido ouvidos  cerca de 15 peritos e entidades para a realização de um relatório - que não é público - e que foi entregue ao Ministério das Infraestruturas, constituído por 25 volumes, em que no seu resumo estão 12 recomendações. Essas recomendações tiveram o aval de todos os participantes do grupo de trabalho, incluindo do Governo Regional à data (o governo anterior ao atual, liderado pelo PS). Eu participei na altura na maior parte das reuniões, acompanhando o então diretor regional das Obras Públicas e Comunicações, o eng. Frederico Sousa. Das recomendações desse relatório, embora ele não seja público, consta a necessidade de haver uma decisão sobre o novo anel CAM até ao primeiro trimestre de 2020, o que não foi cumprido. Mas havia também a recomendação de que, até ao final do primeiro trimestre de 2020, deveria ser tomada uma posição sobre a construção de uma Plataforma Atlântica CAM, ou seja, saindo de uma realidade em que temos apenas uma ligação de cabos submarinos para uma nova infraestrutura com mais potencialidades no futuro. E havia recomendações como a inclusão de serviços na infraestrutura, nomeadamente ao nível da deteção sísmica e de tsunamis, mas também sobre a necessidade dos cabos terem, pelo menos, seis pares de fibra ótica e não apenas um, como têm atualmente. Nos Açores, era recomendado dois pontos distintos de amarração, embora não estivessem especificados quais seriam esses pontos, no sentido da decisão ser tomada por quem iria implementar o projeto, neste caso, a IP Telecom, que foi mandatada pelo Ministério das Infraestruturas. Claramente, havia a recomendação de  serem duas ilhas distintas, por uma questão de resiliência, porque se tivermos só amarrações em São Miguel, ainda que distantes alguns quilómetros entre si, no caso da ocorrência de uma crise sísmica, como a que aconteceu em São Jorge, por exemplo, todos os Açores poderiam ficar isolados do resto do mundo, em termos de conectividade digital.A nova configuração faz com que, se houver um problema, seja em São Miguel, seja na Terceira, os Açores continuarão a ter acesso ao anel CAM, porque dificilmente haverá simultaneidade de ocorrência de sismos ou vulcões nas duas ilhas ao mesmo tempo. Mas porque é que esta solução foi considerada como sendo a melhor para os Açores? Esta é a solução que o Governo Regional dos Açores entende respeitar  as 12 recomendações do grupo de trabalho  liderado pela Anacom. Voltando um pouco atrás, quando em 2021 a IP Telecom, depois de mandatada para este processo, inicia os contactos, quer com as Regiões Autónomas, quer com os outros parceiros do grupo de trabalho, fomos na altura confrontados com uma solução que fazia ‘tábua rasa’ das recomendações emanadas pelo grupo de trabalho. Aí sim, opusemo-nos à solução que nos foi apresentada, que era uma solução igual à atual, uma solução ‘economicista’ e que não contemplava a componente ‘smart’ de recolha de dados através de sensores nos cabos, que contemplava apenas dois pares de fibra em cada cabo e apenas uma amarração em cada Região. Dissemos então que isso não respeitava as recomendações, pelo que o nosso envolvimento nesse processo foi pugnar para que se respeitassem as recomendações do grupo de trabalho. Se a solução é São Miguel/Terceira/Madeira ou se é Terceira/São Miguel/Madeira, essa já foi uma escolha da IP Telecom... Mas esta (a solução escolhida) é uma boa solução, é uma solução que não prejudica ilha nenhuma e que favorece os Açores no seu conjunto. O Conselho de Ilha de São Miguel afirmou afirmou que esta solução prejudica São Miguel.  Um dos argumentos utilizados é o do aumento do período de latência em dois milissegundos. Sendo São Miguel a ilha responsável pela grande maioria das comunicações geradas nos Açores, esse fator é relevante? Citando um exemplo que já foi dado nesta discussão, isso é a mesma coisa que dizermos que, num avião que aterra em Lisboa, os passageiros sentados à frente chegam primeiro que os passageiros sentados atrás... Dois milissegundos não têm expressão económica e não têm impacto económico. Aliás, esta solução vem reduzir a latência (tempo que demora o envio de um pacote de dados de um ponto para outro), por ser uma solução tecnologicamente mais evoluída. Além disso, o aumento da largura de banda que este novo cabo submarino vem trazer e que é cerca de 40 vezes mais a que nós temos atualmente na conectividade com o continente, vai permitir um menor congestionamento no acesso ao cabo submarino pelas redes terrestres. E só isso já é um grande ganho em termos de desempenho. Também a questão dos dois milissegundos pode ser um pouco falaciosa, na medida em que nesta solução, alguém que tenha uma boa ligação à internet em Ponta Delgada pode vir a ter uma latência menor do que alguém que esteja na Praia da Vitória, por exemplo, ‘consumindo-se’ esses dois milissegundos na rede terrestre.  Gostaria ainda de referir que a componente de sensorização dos cabos submarinos é fundamental para que se consiga desenvolver o conhecimento científico e, com isso, promover a fixação da comunidade científica aqui nos Açores. Por fim e sobre a questão de São Miguel, gostaria de esclarecer um equívoco que tem surgido sobre este assunto, que tem a ver com a ideia de que houve uma decisão do Governo Regional para centralizar o cabo na Terceira e, com ele, ali instalar serviços e infraestruturas. Isso não é verdade e isso nunca aconteceu! O que o Governo Regional quis foi garantir que São Miguel e Terceira estavam ligadas ao novo sistema de cabos submarinos, por serem os dois maiores centros de tráfego da Região. A quem irão ser fornecidos todos esses dados que os novos cabos submarinos irão recolher?Esta é uma pergunta que nós também queremos de ver respondida pelo Ministério das Infraestruturas. Estes novos cabos integram uma solução nos repetidores com cinco sensores que permitem a deteção sísmica e de tsunamis, mas também a determinação da pressão, da temperatura e da condutividade (medição da salinidade da água, por exemplo). Vamos ter assim o maior laboratório em tempo real do Atlântico, recolhendo dados que valem muito conhecimento e dinheiro. Por isso é que uma das preocupações do Governo Regional é a de que ele não conheça mais atrasos e de que os Açores possam ter acesso a esses dados, desde logo a Universidade dos Açores e que eles não sejam apenas disponibilizados a entidades no continente. Quem irá assegurar a exploração do atual sistema de cabos submarinos até à implementação do novo anel CAM?Esta é uma preocupação que temos...A Altice já disse estar disponível para garantir a manutenção dos atuais cabos submarinos...Sim e ainda bem que a Altice está disponível... Mas é preciso alguém contratar com a Altice. Existe uma declaração da Anacom que dá conta desta disponibilidade em prolongar o tempo de vida da atual solução, até porque já em 2024 não iremos ter ainda a nova infraestrutura implementada, sendo que a previsão é a de que ela venha a ser implementada até ao final de 2026. Por isso, é imprescindível que o Ministério das Infraestruturas garanta a exploração da atual solução.Existe o risco de um ‘apagão’ nos Açores?Eu diria que se o Ministério das Infraestruturas não contratar com a Altice o prolongamento da exploração da solução atual até 2028, esse risco é real, porque não pode a atual infraestrutura ficar sem suporte e manutenção. Estando em fim de vida útil, esta infraestrutura vai necessitar cada vez mais desse suporte e dessa manutenção. Não se espera que o cabo avarie no dia seguinte ao do final da sua vida útil, mas a partir daí, a infraestrutura terá necessidades de manutenção diferentes das que tem atualmente. Não acredito, por isso, que a República não acautele os interesses das Regiões Autónomas nessa matéria. Em que ponto está o processo de substituição do anel interilhas?A substituição do anel de cabos submarinos interilhas é uma situação que nos preocupa bastante e, por isso, já pedimos ao ministro das Infraestruturas para criar um grupo de trabalho - como aconteceu com o anel CAM - e que possa começar já a discutir o anel interilhas, no sentido de se promover a contratação da sua substituição o mais depressa possível. Nesse sentido, temos também muitas exigências a fazer relativamente à conectividade que deve ser promovida com as outras ilhas. Nós gostávamos que os dois anéis tivessem avançado ao mesmo tempo e fizemos pressão nesse sentido, mas a República achou que o anel interilhas poderia ser abordado logo a seguir ao anel CAM. Isto apesar de acharmos que não seria necessário esperar  pelo fim do novo anel CAM para já termos também desenvolvimentos relativamente ao anel interilhas.