Cláudia Varejão usou a ficção como "lugar de libertação" para filmar jovens 'queer'
6 de dez. de 2022, 11:26
— Lusa/AO Online
"Lobo e Cão",
que se estreia esta semana nos cinemas, é apresentado como a primeira
longa-metragem de ficção da realizadora Cláudia Varejão, cujo percurso
no cinema tem passado sobretudo pelo documentário.O
filme foi feito em São Miguel, nos Açores, num trabalho de escrita de
argumento, desenvolvimento, produção e rodagem com a comunidade local e
que teve um importante caráter social, porque envolveu não-atores e
levou à criação de um centro de apoio para pessoas LGBTQI+.A
narrativa ficcional cruza os caminhos de três jovens, a viverem numa
ilha "marcada pela religião e tradições", como se lê na sinopse: Ana,
que "percebeu cedo que as raparigas têm tarefas distintas das dos
rapazes", Luís, "o seu melhor amigo que tanto gosta tanto de vestidos
como de calças, e Cloé, uma amiga que chega do Canadá, "trazendo consigo
os dias brilhantes da juventude".Cláudia
Varejão filma o lado mais privado e pessoal de cada uma destas
personagens, mas também o confronto com o contexto onde vivem."Estamos
a falar de uma ilha que ainda é muito tradicional, tem heranças
judaico-cristãs muito fortes, o peso da religião é muito presente. E ao
mesmo tempo temos uma geração contemporânea que é altamente modernizada,
ligada ao mundo pela Internet; são de uma forma geral muito ‘queer’,
como são também os jovens do continente, muito diversos, cada vez com
menos estereótipos ligados ao binarismo de género e de expressão, e isso
a coabitar um território cercado pelo mar é muito visível", descreveu a
realizadora.Cláudia Varejão recordou que o
filme foi construído com as suas histórias pessoais e com a das pessoas
que aceitaram entrar no projeto, num trabalho colaborativo que durou
vários meses e contou com a participação de dois psicólogos."Os
jovens e as pessoas adultas que fazem parte do elenco não têm
experiência de representação, mas têm qualquer coisa que se aproxima do
desenho de personagem que estava estabelecido. […] Eu queria muito
construir com as pessoas e elas sentiram-se convocadas e com voz",
explicou.Em "Lobo e Cão" entram Ana
Cabral, Ruben Pimenta, Cristiana Branquinho, Marlene Cordeiro, João
Tavares, Nuno Ferreira, Luísa Alves, Maria Furtado, Mário Jorge
Oliveira, entre outros.Experiente no
registo documental, em filmes como "Ama-san" (2016) e "Amor Fati"
(2020), Cláudia Varejão percebeu que, em "Lobo e Cão", a ficção seria
"um lugar de libertação e de voz" para os jovens ‘queer’ que a
protagonizam."O documentário isola as
pessoas no papel que elas já representam nas suas vidas. A ficção
permite […] o lugar de experimentação, de procura de outros papéis de si
próprias, de uma expressão mais diversa que eu antes não tinha
explorado. A ficção neste filme é um lugar de libertação e de voz, onde
as pessoas, dentro do filme, dentro de um território seguro, podem
exprimir-se com liberdade, podem ter a voz que normalmente no quotidiano
acabam por ter receio de ter", disse.Cláudia
Varejão sublinhou que, no processo de trabalho do filme, nunca quis ter
uma postura de quem está de fora daquela comunidade e daquele universo."Sou
mulher, lésbica, sou uma pessoa ‘queer’ que se identifica com as
pessoas, que partilha as mesmas questões, os mesmos problemas, as mesmas
angústias. Não estou tão distante da realidade de cada um", afirmou.Sobre
o impacto da produção deste filme em São Miguel, Cláudia Varejão
regista sobretudo o projeto de apoio social à comunidade LGBTQI + (A)mar
- Açores pela Diversidade, com o envolvimento de entidades públicas, no
combate à homofobia e na defesa da comunidade ‘queer’."Nestas
coisas da liberdade de género, havendo um diálogo social e público,
começando este diálogo de maior exposição, já não dá para voltar atrás",
acredita a realizadora."Lobo e Cão", que
teve uma estreia premiada este ano no festival de Veneza, onde venceu o
prémio principal no programa paralelo "Dias dos Autores", é uma produção
luso-francesa entre a Terratreme Filmes e a La Belle Affaire.