Caminhar e correr para manter a cabeça sem estado de emergência
19 de mar. de 2020, 14:18
— Ana Cristina Gomes/Agência Lusa
Com uma doença arterial periférica, o
empresário Luís Cochofel, de 63 anos, subia esta manhã a Avenida da
Boavista sem máscara, luvas ou fato de treino, apenas a roupa habitual
para a caminhada do costume por recomendação médica, defendendo que,
mesmo em estado de emergência devido à Covid-19, deve ser permitida
“alguma atividade exterior”.“Enquanto
caminhamos, as folhas velhas dos pensamentos vão caíndo e vamos
encontrando soluções para as dúvidas que, se estivermos quietos, ficam
lá, não saem”, contou.Com o Parque da
Cidade fechado, muitos dos seus utilizadores diários optaram por andar
de bicicleta, passear o cão e correr ou caminhar até à beira-mar pelo
corredor central da Avenida da Boavista, vedado aos carros, embora
muitas vezes eles até faltassem nas vias que lhe estão dedicadas e por
onde passavam viaturas da Polícia Municipal a pedir “Fiquem em casa” ou,
em francês, “Restez chez vous”, num cenário que a estudante de cinema
Débora, de 25 anos, descreve como sendo de um “filme pós-apocalíptico”.A
jovem brasileira, está a fazer no Porto um curso de dois anos, costuma
correr no Parque da Cidade e, face à pandemia de Covid-19, só sai “para
correr” e “ir ao mercado, uma vez por semana, ou quando falta alguma
coisa”.“Sempre tem a alternativa de fazer exercício em casa. Mas prefiro sair e tomar um ar”, descreve.Se o exercício físico na rua for proibido, Daniela “entende”, mas reconhece sentir falta “de sair um pouco de casa”.“A correr não toco em nada, não tenho contacto com as pessoas. Acho que não é perigoso”, disse.Aos
63 anos, Luís Cochofrel espera não se reformar “nos próximos 40 anos”,
tal como espera não ficar impedido da caminhada diária, embora em casa
andem a gostar cada vez menos das suas saídas.“Somos
quatro em casa. O toque praticamente desapareceu, desde sexta ou
sábado. Foi quase que naturalmente. É uma coisa que faz falta. Dar um
beijo à mãe dá jeito. Mas não acontece, já”, afirma.Em casa, “estão muito zangadas” por Luís “estar sempre a sair”.“Mas
tenho indicações médicas para caminhar, idealmente duas horas por dia.
Tenho de colocar a questão: prefiro ficar em casa, ter uma gangrena e
amputar as pernas ou corro o risco da gripe? Prefiro o risco da gripe",
confessa. “Moro aqui ao pé do mar. Ir ao mar e voltar não faz mal a ninguém”, resume.Com
18 anos, Lia Lemos corre todos os dias. Faz parte da Seleção Nacional
de Atletismo, as provas estão suspensas, mas o corpo não pode parar.“Tenho
um grupo de treino e temo-nos dividido, para treinar individualmente.
Acho que não nos vão proibir. Sou atleta de seleção nacional, teria de
fazer tudo em casa. Não podia fazer corrida contínua, por não ter
passadeira. Não poder fazer a corrida contínua tem um impacto grande,
sobretudo no meio fundo”, justifica.Daniela Palhares, designer de 48 anos, e o cão, Tamino, costumam sair todos os dias para correr e hoje não foi exceção. “Tenho
mesmo necessidade de correr. A corrida, como qualquer desporto, quando
praticado muito assiduamente, cria algumas adições físicas. Criamos
alguma substância química que nos vicia e o corpo está sempre a
pedir-nos isso. É muito complicado, causa muita ansiedade, pensar em não
poder fazer aqueles 10 quilómetros diários que, acima de tudo, nos
fazem muito bem mentalmente”, descreveu.Daniela
tem uma empresa, estão “todos a trabalhar a partir de casa desde
terça-feira” e correr é rotina diária, “uma hora, três vezes por dia”.“Tem de ser, por mim e por ele [o cão]”, refere. Pelo menos o cão “tem sempre de vir à rua”, mas a designer preocupa-se que possa ser “proibido caminhar ou correr ao ar livre”.“Custa-me muito ter de ficar em casa”, reconhece.Se a proibição chegar, vai aceitá-la: “não temos outro remédio”.“Acho
fundamental conseguirmos ter o mínimo dos mínimos de condições pessoais
para sobreviver a tudo isto. Sou a favor de tudo o que se está a fazer,
mas é preciso encontrar um equilíbrio, senão vamos arranjar outro tipo
de problemas. É preciso encontrar um equilíbrio com muita sabedoria,
ponderação e maturidade”, sustenta.A
cidade está diferente e Daniela acha que, “se no início até pode saber
bem, por estar tudo mais tranquilo”, passada uma semana [de menos
trânsito e menos pessoas na rua], “começa a afetar psicologicamente”.“Somos
seres de hábitos, vai afetar-nos. Mais precisamente por sermos
criaturas de hábitos, vamo-nos habituar. É uma questão de tempo. O tempo
é o maior dos escultores”.Em Portugal, a
Direção-Geral da Saúde (DGS) elevou hoje o número de casos confirmados
de infeção para 785, mais 143 do que na quarta-feira. O número de mortos
no país subiu para três.De acordo com o boletim, há 8.091 contactos em vigilância pelas autoridades de saúde.Atualmente, há 24 cadeias de transmissão ativas em Portugal.Portugal encontra-se em estado de emergência desde as 00:00 de quarta-feira.O
estado de emergência proposto pelo Presidente prolonga-se até às 23:59
de 02 de abril, segundo o decreto publicado quarta-feira em Diário da
República que prevê a possibilidade de confinamento obrigatório
compulsivo dos cidadãos em casa e restrições à circulação na via
pública, a não ser que tenham justificação.O Conselho de Ministros aprova hoje as medidas que concretizam o estado de emergência proposto pelo Presidente.Entre
as medidas para conter a pandemia, o Governo já tinha suspendido as
atividades letivas presenciais em todas as escolas desde segunda-feira e
impôs restrições em estabelecimentos comerciais e transportes, entre
outras.O Governo também tinha anunciado o controlo de fronteiras terrestres com Espanha.