Associação dos Ex-Combatentes da Ilha do Faial edita livro
11 de jan. de 2019, 11:00
— Victor Rui Dores
Mas de que falamos nós
quando falamos em Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar? Falamos de um conflito
armado que durou de 1961 a 1974 e que constituiu uma das mais
trágicas encruzilhadas da História portuguesa. Falamos de uma
ferida que, meio século depois, ainda não cicatrizou na memória
dos que a viveram. Não foi só o caudal de mortos, feridos,
estropiados e desaparecidos que essa guerra provocou em Angola, Guiné
e Moçambique. Foi também a memória de um tempo em que o medo, a
crueldade e a intolerância foram postos ao serviço dos mecanismos
repressivos do Estado Novo, numa altura em que Portugal, “país uno
e indivisível”, vivia, entre parêntesis e a preto e branco, no
seu ruralismo agrário, no seu conservadorismo bacoco e no seu
analfabetismo envergonhado.
Falo com um desses
ex-combatentes, Raul Dutra, faialense, 74 anos, que recorda os dias
incertos da guerra: os ataques, as flagelações, as emboscadas e
contra-emboscadas, o sopro dos rebentamentos, o disparo dos
morteiros, as rajadas de G-3, o perigo das minas anti-pessoal, os
roncos de “unimogs” e “berliets”, a marcha lenta, a farda
ensopada, as ordens insensatas, as missões absurdas, as picadas da
incerteza, a solidão do capim, a angústia do cachimbo, o medo, o
isolamento, o pânico, a distância, a ausência dos familiares e
amigos, as noites de insónia, os temores, as alucinações, a
memória de ver matar e morrer…
Raul lutou pela sua
sobrevivência, tal como os guerrilheiros inimigos combateram pela
sua liberdade. Servindo de “carne para canhão”, aprendeu, na
guerra, a amar melhor a paz e a celebrar a amizade fraternal. Vendo a
morte a rondar por perto, conheceu o valor excecional de viver.
A denominada “Síndrome
do Stress Pós-Traumático da Guerra” não é uma figura de
retórica – é uma enfermidade que ainda hoje atinge milhares de
ex-combatentes (há estudos que apontam para cerca de 140.000), com
reflexos diretos nas suas famílias, e, na ótica de alguns
psiquiatras, trata-se mesmo de um problema de saúde pública.
Os que ontem eram jovens
na flor da idade (entre os 20 e 24 anos) vivem hoje o trauma e o
recalcamento dessa guerra escusada, estúpida e inglória, como são,
de resto, todas as guerras.
Para preservar a memória,
resolveu a Associação dos Ex-Combatentes da Ilha do Faial editar o
livro 'Que seria de nós se não tivéssemos memória?' (Dezembro,
2018), com texto e organização de Jorge Vieira, arquivo e
organização de Raul Dutra, colaboração de José Alemão e Hélio
Pombo.
A publicação dá conta
de todo o historial da associação, fundada no dia 10 de maio de
2004, com minuciosas informações sobre os seus estatutos e
associados, suas direções e comissões, seus órgãos sociais,
delegados das freguesias, diretores responsáveis por freguesias,
sócios no ativo, sócios inativos e sócios honorários.
Ilustrado com uma série
de fotos que dão contexto, forma e verdade, o livro inclui ainda
depoimentos do general Silva Cardoso, do coronel Carlos Matos Gomes e
do jornalista-escritor João Paulo Guerra, bem como a letra e a
partitura do “Hino da Associação dos Ex-Combatentes da Ilha do
Faial”, com música de Amorim de Carvalho e letra de Victor Rui
Dores.
A memória é um músculo
e ninguém vive sem memória. Os ex-combatentes da ilha do Faial não
têm, felizmente, falta de memória e, por isso mesmo, não esquecem
os 12 camaradas faialenses que, “em defesa da pátria”, tombaram
para sempre em terras africanas, conforme podemos hoje ver no
memorial, sito à Avenida 25 de Abril, na Horta.
Isto significa que eles já
não combatem mas ainda lutam. Lutam contra o esquecimento. Lutam
contra a incompreensão dos sucessivos governos deste país que tão
mal os têm tratado... Hoje, mais vividos e menos jovens, eles teimam
em preservar a memória, através de artigos de imprensa,
publicações, e encontros anuais.
Que seria de nós se não
tivéssemos memória? Eis a pergunta que fica no ar.
O
livro vem precisamente lembrar-nos aquilo que não podemos esquecer.
E não esqueço a quadra de António Aleixo: “À guerra não ligues
meia/ Porque os grandes cá da terra/ Tendo a guerra em terra alheia/
Não querem que acabe a guerra”.