“Assisti a mais óbitos por Covid do que em 10 anos de enfermeira”
1 de fev. de 2021, 11:24
— Carolina Moreira
Quando o vírus chegou aos Açores, em
março de 2020, Cláudia trabalhava na Cirurgia 4 do Hospital do Divino
Espírito Santo, em Ponta Delgada. “Foi tudo muito rápido. O meu serviço
foi adaptado e mais de metade da equipa foi destacada para as
enfermarias Covid. Nos primeiros dias estivemos a preparar a enfermaria,
com o material necessário e a organizar os quartos e depois começámos a
receber os doentes para internamento”, recorda.Para a enfermeira
com 10 anos de experiência, o dia-a-dia no trabalho mudou completamente.
“Na primeira fase, tínhamos muito medo do próprio vírus e tivemos que
nos habituar a usar os equipamentos de proteção individual. Hoje em dia,
já lido com isso com muita tranquilidade e normalidade, mas ficamos
sempre com receio por causa da nossa família”, confessa.Ao início,
conta que o receio era tanto que preferiu viver num alojamento local
durante mais de dois meses para não correr o risco de infetar a família,
sendo as videochamadas a única forma de contacto que mantinha.
“Atualmente, estou em casa e tenho todos os cuidados possíveis, mas não
deixa de ser complicado”, afirma.A enfermaria onde Cláudia Cabral
trabalha tem atualmente cerca de 10 doentes com Covid-19 internados.
Segundo a enfermeira, trata-se de um serviço de nível 1 destinado a
internamentos “mais ligeiros”, mas “também ficamos com os casos já em
situação paliativa, em que asseguramos que a pessoa fica confortável até
ao final da vida”.“Na primeira vaga, apanhei muitos casos
paliativos, mais do que agora, porque recebemos na altura muitos doentes
do Lar do Nordeste que eram idosos com muitos problemas de base e
tivemos 12 óbitos só desses utentes”, recorda.“Lembro-me de ter
turnos com dois ou três óbitos e isso é praticamente mais do que aquilo a
que assisti durante a minha vida profissional toda”, frisa, salientando
que “se trata sempre do familiar de alguém que nem se conseguiu
despedir”.“Nas enfermarias Covid, o doente tem que sair num saco
plástico, como se vê nos filmes, e a família não pode ver a pessoa de
maneira nenhuma por causa do risco de contágio. Basicamente, é pegar no
saco, colocar no caixão e enterrar sem abrir”, explica.“Tem sido
muito difícil lidar com tudo isto. Por vezes, choramos sozinhos ou com
os colegas e até com os nossos familiares. Temos de viver um dia de cada
vez. Lembro-me de turnos em que um colega estava mal e nós apoiávamos,
no outro dia éramos nós e tem sido assim que temos tentado ultrapassar a
atual situação”, conta, acrescentando que tenta encontrar algum
“conforto naqueles doentes que vão recuperando e saindo do hospital”.Também
a nível pessoal, a pandemia ‘mexeu’ com a vida de Cláudia. “Tinha
casamento marcado para junho do ano passado e tivemos que desmarcar.
Agendámos para março deste ano e infelizmente já tivemos que cancelar
porque, até abril, não há esse tipo de cerimónias na nossa ouvidoria.
Desta vez, deixámos mesmo tudo em suspenso e estamos com a esperança que
o final do ano seja melhor por causa da vacina”, conta.Enquanto
profissional de saúde, Cláudia Cabral ressalva que já tomou as duas
doses da vacinação contra a Covid-19, comparando os tão falados efeitos
secundários àqueles sentidos por uma criança quando é vacinada.“Na
primeira dose, senti algum desconforto no braço, habitual da vacinação.
Na segunda dose, senti-me mais abatida, com algumas dores musculares,
quase como se fosse uma gripe, e também fiquei muito nauseada e
novamente com o braço muito dorido, mas tudo isso foi só nas primeiras
24 horas. É o corpo a reagir e a criar anticorpos, exatamente como as
crianças quando tomam vacinas, em que ficam mais abatidas e com uma
pontinha de febre”, relata.Da ‘normalidade’ do seu trabalho como
enfermeira, Cláudia afirma que aquilo de que tem mais saudades é do
“contacto físico com o doente”. “Sinto falta do tocar sem ter quatro
pares de luvas e o doente ser capaz de ver as nossas expressões faciais,
porque nós temos uma máscara, uma viseira e uns óculos de proteção e os
doentes nem conseguem distinguir quem é o enfermeiro, o médico ou o
auxiliar”, salienta.Além disso, a enfermeira fala em “algum cansaço e
frustração” relacionado com o funcionamento do hospital. “Há vezes em
que penso em desistir da profissão, não pelo trabalho em si, mas por
tudo o que está à volta em termos de organização e gestão e acho que
houve muitos pormenores nesse sentido que falharam e que acabam por
afetar o nosso trabalho. Até pode ser só o cansaço a falar, mas nesta
altura acabamos por ponderar muita coisa”, realça.No que à população
em geral diz respeito, Cláudia Cabral apela a que sejam “acatadas as
políticas implementadas, as máscaras, a etiqueta respiratória e os
distanciamentos, porque tem mesmo que ser”.“Já apanhei muitos
internamentos por Covid em que as pessoas tomaram consciência de que
tiveram um comportamento menos adequado. E, muitas vezes, apanhamos
pessoas que não têm culpa da situação em que estão, como pessoas idosas e
acamadas, que tiveram Covid por causa da família ou do cuidador que não
teve cuidado, o que causa alguma revolta”, afirma.