Autor: Susete Rodrigues
Natural de Ponta Delgada, Raquel Dutra teve uma infância feliz, muito ligada ao irmão, “temos uma diferença de idades de 22 meses”, mas também à restante família. Teve o privilégio de “passar muitas vezes, férias com o meu irmão e os meus avós, no Nordeste, de onde eles são naturais, e tenho muitas memórias que me fizeram a pessoa que sou hoje, com valores que, se calhar, de outra forma, não teria”.
A música sempre fez parte do seu contexto familiar, “sempre ouvimos música, mas a minha família, do lado materno, era mais apreciadora/ouvinte. Do lado paterno, eram mais ligados à execução, com tradição relacionada com a filarmonia”, conta-nos. Diz que “o meu avô paterno foi maestro de filarmónica muitos anos. Portanto, era normal ir à casa dele e ver as partituras em trabalho, ouvi-lo trautear frases musicais ou pedir ao meu pai uma opinião sobre determinado concerto ou sobre o trabalho que estava a desenvolver”.
Raquel Dutra teve uma “breve passagem pelo Conservatório Regional de Ponta Delgada, já com 16 anos. Na altura, queria ingressar em canto, “mas ainda não tinha a voz madura, então estive em guitarra clássica”. Fez um ano no Conservatório e depois dedicou-se aos seus estudos, mas ficou sempre com vontade de voltar. Regressa “quando vou ingressar a minha filha no Conservatório”.
Conta-nos que tem uma relação mais profissionalizante na música “depois de ter passado pela tuna que ajudei a fundar, a Enf’In Tuna. Foi aí que comecei a concorrer para prémios de melhor solista. Depois percebi que já estava a arrecadar alguns prémios e “com muito incentivo do meu marido, comecei a tocar e a cantar fado mas, ligando-me sempre ao cancioneiro açoriano”.
Confessa que não se vê a substituir a sua carreira na enfermagem pela música ou vice-versa, “por uma questão prática e realista”, também porque “encontro muita satisfação pessoal, diária, naquilo que faço como enfermeira. Sinto uma gratificação imediata e direta por sentir que faço a diferença na vida das pessoas, que posso fazer essa diferença”. Portanto, “não dispenso uma e outra. São as duas partes de mim”. Por outro lado, “ainda é difícil e muito desafiante para uma pessoa, na região, viver só e exclusivamente da música”.
Em 2007 inicia a sua atividade musical a solo e em 2012 lança o álbum ‘Cantos do Mar e da Terra’, que “vai ter continuidade agora, com este novo trabalho que estamos a finalizar. A parte musical já está toda registada, faltam apontamentos vocais e todo o trabalho de edição para ser lançado ainda este ano, previsivelmente no último trimestre do ano”.
Entre o seu primeiro trabalho e este novo, passaram-se alguns anos, porque pelo meio “colocou-se a vida”, disse com boa disposição, explicando que “tive duas filhas, criá-las e ser mulher. Levar um sonho adiante, por vezes, pode ser desafiante. Mas tenho uma família incrível, que me apoia e está sempre ao meu lado quando penso em qualquer projeto. Às vezes até tenho medo de pensar, porque do pensamento à ação, sei que pode ser um passo muito rápido”, destacando que, se não fosse o “apoio da minha família: do meu marido, dos meus pais e sogra, das minhas filhas, não seria fácil ter feito os projetos que tenho feito até aqui. Ter-me reinventado tantas vezes, e integrado trabalhos tão diferentes... Tenho a música muito presente na minha rotina e nem sempre só a cantar e a fazer espetáculos, desenvolver técnica vocal, organizar trabalho e concretizar os projetos que temos entre mãos, exige muitas horas de estudo, ensaios e trabalho de casa”.
Este novo álbum de Raquel Dutra para além de complementar o anterior, “vem trazer ao conhecimento e à luz da descoberta, trabalho que está registado em arquivo e que de outra forma não teria vida”, adianta. “A música existe e estamos a instrumentá-la, fazendo arranjos próprios, para dar a conhecer um pouco mais da tradição e até da vivência açoriana noutros tempos, nestas ilhas. Estou a ler o trabalho de Raul Brandão, ‘As Ilhas Desconhecidas’, enquanto vou fazendo essa viagem e percebo uma descrição - na altura que estes arquivos foram escritos – que retrata muito bem aquilo que é o cenário das ilhas numa vivência no fim do século XIX”, disse-nos. “Penso que é quase como voltar às nossas origens, perceber onde temos as nossas raízes, em termos de cultura açoriana. É um trabalho que tem sido incrível, faz-me sentir e criar uma identidade açoriana mais enraizada e mais construtiva, e que gostava que outros partilhassem comigo”.
Para Raquel Dutra a maior dificuldade na sua vida artística é “lidar com as expectativas das pessoas e fazer o público reconhecer o valor do trabalho musical. (…) mas quando somos inspirados por aquilo que fazemos, quando acreditamos e gostamos do que fazemos, isso é o motivo suficiente para continuar o nosso trabalho”. Refere ainda que “não sentia muito isso como uma necessidade, mas a verdade é que quando ingressei no conservatório, descobri potencialidades que nem sabia que tinha e que me ajudaram a crescer no instrumento que é a minha voz, e que, se não tivesse passado por lá, não teria evoluído como sinto que evoluí desde então”.
Pisar um palco, seja qual for, é “sempre um desafio. Tenho sentimentos que se diferenciam consoante aquilo que vou fazer porque já fiz trabalhos em registos muito diferentes e acho que exploro a minha plasticidade vocal até… ao seu limite”. De acordo com Raquel Dutra “todas as oportunidades de crescimento que me possibilitaram estar ao lado de grandes músicos e artistas que admirava, foram sempre momentos em que me senti realmente muito realizada”. Exemplifica com o trabalho de tributo a Andrew Lloyd Webber, com excertos da peça do ‘Fantasma da Ópera’, no Coliseu Micaelense, bem como “poder partilhar o palco com a Helena Oliveira no espetáculo ‘Cravos D’Aqui e D’Acolá’, e com outros cantautores açorianos, foram sempre momentos muito especiais. No nosso trabalho, levá-lo a outras ilhas, também foram sempre momentos marcantes”. Igualmente, o lançamento do seu primeiro trabalho, afirma que “foi muito gratificante ver que esgotámos a sala do Teatro Micaelense. No palco estava eu e os dois músicos que me acompanhavam, o Adílio Soares - que ainda me acompanha na viola da terra - e o meu pai, Jorge Dutra. Éramos só os três perante um auditório completo. Foi muito, muito bom”. Claro que foi “um incentivo à continuidade do nosso trabalho. Hoje em dia, recebemos muitas manifestações diretas de reconhecimento pelo nosso trabalho, porque nas redes sociais há a possibilidade de ter esse retorno no imediato. Recebemos muitas mensagens de carinho, de pessoas de várias localizações geográficas”. Enaltece que partilhar o palco com os músicos da Orquestra Ligeira de Ponta de Delgada é, igualmente, sempre gratificante, porque eles são executantes brilhantes! Este é um projeto que “também acompanho como vocalista e tem sido muito bom. As oportunidades que me têm surgido têm sido realmente muito enriquecedoras”.
Um dos objetivos que gostaria de ver concretizado “era poder levar a nossa música, a música dos Açores, a todas as ilhas”. Sendo que, com este seu segundo trabalho de cancioneiro, “uma das pontes que queremos criar é com a diáspora e as nossas comunidades da saudade”. Gostava ainda de “fazer concertos internacionais e de ter mais oportunidades para partilhar o palco e experiências musicais com profissionais da música que me inspiram. Trabalhar em projetos em comum, é sempre muito enriquecedor e, felizmente, é isso que estamos, de momento, a fazer, para o nosso espetáculo “Cantar Açores: do Terreiro ao Palco”, que será apresentado no dia 5 de julho na noite açoriana do Festival “Música no Colégio”, finaliza.