As memórias de uma tragédia que há 20 anos mudou a Ribeira Quente

30 de out. de 2017, 07:10 — Lusa/AO Online

“Coube-lhe a 'ele' cinco caixões, da mulher e de quatro filhos. É uma imagem que me chocou bastante”, diz António Rita, de 74 anos.'Ele' era um pescador que naquela noite ficou no porto de Ponta Delgada a “guardar” a traineira “Pérola dos Açores”, de que António Rita era mestre.António Rita, que foi depois presidente da junta, recorda quando, na madrugada de 31 de outubro de 1997, a tragédia lhe bateu à porta: o rés-do-chão de sua casa tinha sido atingido por água, lama e estava “tudo partido”.Após conseguir sair de casa, teve outro embate, a notícia de que “estava tudo morto na canada da Igreja Velha”, mas só o amanhecer deixou claro que aquela era, mesmo, a realidade.“Foi terrível mesmo”, repete António Rita, para que não subsistam dúvidas, para que não se esqueçam as vítimas desta tragédia, cujos nomes jazem, também, numa lápide na freguesia.É lá que estão os nomes das duas filhas e da mulher de José Cardoso, hoje com 54 anos, que a Lusa encontrou na marginal da Ribeira Quente, avenida que ganhou depois daquele dia a designação de “31 de Outubro”.“Tinha 34 anos, esposa e duas meninas. Uma ia fazer sete anos e a outra tinha 25 dias”, afirma.José Cardoso, que era maquinista no porto de pescas, escapou, depois de ter estado parcialmente soterrado quatro horas.E como conseguiu continuar a vida? “Trabalhei noite e dia, muito, para esquecer. Tinha que fazer assim, se estivesse em casa era pior”. E teve o apoio de familiares.“Comecei uma vida de novo. Aquela acabou e comecei outra, tinha que ser. A vida continua, quando a gente morre não continua”, refere.Foi nesse renascer que José Cardoso tornou a casar, casamento do qual tem um menino de 6 anos e uma adolescente de 15. Continua a viver na Ribeira Quente.“Gosto desta terra”, justifica.Daniel Cardoso Linhares, de 84 anos, morava na rua da Alegria e tinha uma mercearia na canada da Igreja Velha e outra na marginal.“Vim para a loja às cinco da manhã. Estavam aqui duas mulheres e disseram ‘está tudo arrasado’”, conta Daniel Linhares, acrescentando que ao ver o que se tinha passado, com os “amigos todos enterrados”, a tristeza tomou conta de si.Daniel Linhares recua no tempo para dizer que aquele “era o lugar mais sossegadinho” da freguesia, abrigado do vento e longe do mar e da ribeira, fontes de preocupação para a população que à data somava umas mil pessoas.Foi no mar, ao largo de São Miguel, que Jorge Leite, pescador de 54 anos, recebeu a notícia: “Houve uma tragédia na Ribeira Quente”.O barco segue caminho para terra, em Ponta Delgada, e com o coração nas mãos, Jorge Leite “corre” para a Ribeira Quente, com o pensamento de que moravam 13 pessoas na casa da família, número que poderia ser de azar.Ao chegar, Jorge Leite viu a casa da família arrasada. “Pensei logo que não tinha família nenhuma viva”, lembra.O pescador só se sentiu em porto seguro quando soube que a família estava a salvo, mas depois foi um misto de sentimentos. “Fiquei contente. Mas morrer tanta gente deixou-me triste”.Da tragédia, o jovem Márcio Piné, também pescador, recorda o cheiro a lama e a ajuda que ele e muitos outros foram dar para tentar salvar os que lutavam pela vida, como um homem que tinha uma viga junto ao corpo. “Salvou-se, mas a mulher e a filha…” e não completa a frase.Ricardo Linhares, de 49 anos, manobrador de máquinas no porto, acordou com o barulho das derrocadas e, depois, dos gritos “a pedir ajuda, socorro”.Da Ribeira Quente de 1997 à de hoje há uma “diferença grande”, diz-se pela freguesia que, agora, “está bem protegida”, mas continua a ter um único acesso rodoviário.“Melhorou, mas as pessoas que se foram embora não podem estar a gozar isto”, lamenta Ricardo Linhares.António Rita acrescenta: “Triste é daqueles que morreram. A freguesia ficou mais desenvolvida. Depois de qualquer tragédia, as coisas melhoram”.