APAV questiona estatuto autónomo para crianças vítimas de violência doméstica
APAV
25 de jun. de 2020, 13:00
— Lusa/AO Online
“Para
nós sempre foi essencial que a criança seja considerada uma vítima de
violência doméstica. Não só, como é óbvio, quando é vítima e
destinatário primeiro dessa violência, mas também quando é exposta a
essa violência. A nossa questão prende-se com haver uma falta de visão
integrada do ponto de vista legislativo dos vários tipos de vítimas, dos
vários tipos de direitos e de haver muitas vezes apenas a legislação do
momento, do impulso, e que isso, em última análise, acaba por tornar
menos operacional a lei”, disse o presidente da APAV, João Lázaro, em
entrevista à Lusa a propósito dos 30 anos da associação que hoje se
assinalam.A Assembleia da República
voltará a discutir o tema do estatuto de vítima autónoma de violência
doméstica para as crianças expostas ao crime por via de uma petição
pública, que já conta com mais de 26 mil assinaturas (apenas são
necessárias quatro mil para a admissão no parlamento).A
petição é subscrita pela presidente honorária, Manuela Eanes, e a atual
presidente, Dulce Rocha, do Instituto de Apoio à Criança, pelo antigo
ministro da Administração Interna Rui Pereira, o advogado Garcia
Pereira, mas também por associações como a Associação Dignidade;
Associação de familiares e amigos/as de Vítimas de femicídio- ACF,
Associação Das Mulheres Contra A Violência, Mulheres De Braga,
Associação Abraço ou a UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta.A
discussão pode regressar menos de um ano passado sobre o chumbo em
dezembro passado no parlamento de projetos de lei do Bloco de Esquerda e
do PAN nesse sentido. Já em maio deste ano o parlamento voltou a
debater o tema, a propósito da proposta do Governo para rever o regime
jurídico de prevenção da violência doméstica, estando a matéria a ser
trabalhada em sede de especialidade.Se
alguns partidos se batem pela criação de estatuto autónomo, a sua
necessidade não parece evidente, entende João Lázaro, que defende outra
abordagem.“Para nós é óbvio que a criança
exposta deve ser protegida pela lei. Deve ser, de um ponto de vista da
lei que proteja as vítimas de crime e não de começarmos a colecionar
estatutos ou a fazermos anexos de estatutos ou ‘puxadinhos’ de
estatutos”, disse João Lázaro, que entende que é preciso “pensar nas
vítimas de crime face às suas necessidades conforme o tipo de crime do
ponto de vista mais integrado, e até mais holístico, do sistema de
justiça”.Mais do que novas leis, João
Lázaro diz que é preciso “uma clarificação” das que existem, referindo
que estão consagradas na legislação “soluções que estão muito longe de
serem praticáveis”, com “muitos buracos” e omissões de direitos, o que
faz parecer que “ninguém se parece ter preocupado muito com a sua
operacionalização”.“Há uma grande confusão
que claramente não beneficia uma aplicação eficaz, clara, transparente
da lei de proteção e garantia dos direitos para os quais foram
pensadas”, disse.Mais do que legislação
avulsa, que João Lázaro entende que pode ser contraproducente, e
análises caso a caso de direitos das vítimas consoante o crime, a APAV
insiste na necessidade de um integrado, transposto para o Estatuto das
Vítimas de Crime, que deve ser revisto e melhorado, para garantir de
forma imediata direitos que a associação considera essenciais e que
ainda não estão assegurados, como o direito à informação.“O
direito à informação é um direito basilar e chave de cada vítima poder
aceder a todos os outros direitos. Estes direitos de informação e de
acesso a serviços de apoio são fundamentais para as pessoas poderem ser
capacitadas, poderem ter ajuda e poderem exercer os seus direitos. Nós
acreditamos que a qualidade de justiça também se mede pela forma como se
reconhece e trata as vítimas de crime”, disse.As
condições de segurança do país e o empenho das forças de segurança e do
Ministério Público nesse objetivo permite, na opinião de João Lázaro,
dar o “salto qualitativo” na garantia efetiva de direitos às vítimas de
crime, mas ainda que haja “uma clara evolução” nesse sentido nos últimos
30 anos, ainda há “um longo caminho para se trilhar”, que retire a
vítima de uma situação ainda “tão marginalizada no sistema, que continua
a ser claramente arguido-centrista”.“Houve
claramente uma evolução, não chegámos lá ainda. Se todos os direitos
são realmente verdade e quotidianamente efetivados para todas as vítimas
de todos os crimes e não só para as vítimas de alguns crimes? Diria
claramente que não, que há estádios diferentes de desenvolvimento”,
disse, referindo que a profusão de produção legislativa contraria as
“boas intenções” do legislador e provoca “atropelos” à efetividade dos
direitos.Há ainda “uma característica
muito nossa enquanto comunidade”: a “grande diferença” entre o que está
legislado, os “edifícios jurídicos magníficos” e a sua concretização, “a
sua efetivação todos os dias, para os beneficiários reais que devem
existir”.Num contexto europeu no qual se
estimam 75 milhões de vítimas de crime todos os anos, com muitas vítimas
invisíveis, não declaradas, não registadas, João Lázaro destaca o papel
de associações como a APAV para chegar às chamadas “cifras negras” e
ajudar a trazê-las para dentro do sistema, garantindo apoio e direitos.