Antologia de poesia erótica de Natália Correia regressa conforme original de 1965
2 de mai. de 2019, 08:54
— Lusa/AO Online
Ao
fim de mais de dez anos afastada das livrarias, esta “obra proibida”
volta a ser editada, desta vez com as ilustrações do poeta e pintor do
surrealismo português Cruzeiro de Seixas, tal como constava da edição
original do livro, que chegou às livrarias em dezembro de 1965, pela
editora Afrodite, de Fernando Ribeiro de Mello.“Finalmente
num único livro, a poesia maldita dos nossos poetas”, “as cantigas
medievais em linguagem atualizada”, “dezenas de inéditos” e “a revelação
do erotismo de Fernando Pessoa”, prometia a cinta que acompanhava o
volume de 552 páginas.O facto é que a obra
causou escândalo e foi apreendida pela PIDE, a polícia política da
ditadura, com vários intervenientes – entre os quais os escritores e
poetas Mário Cesariny, Luiz Pacheco, José Carlos Ary dos Santos, Ernesto
de Melo e Castro e o editor Fernando Ribeiro de Mello, além da própria
Natália Correia - julgados e condenados em tribunal plenário, num
processo que se arrastou durante anos. O
julgamento dos escritores, “por motivo da publicação de um livro tido
por imoral”, ato considerado “abuso de liberdade de imprensa”, como
relatava o Diário de Lisboa de 8 de janeiro de 1970, terminou a 21 de
março desse ano com a condenação da autora e do editor, por "ofensiva do
pudor geral, da decência e da moralidade pública e dos bons costumes" a
uma pena de 90 dias de prisão correcional, substituíveis por igual
tempo de multa, a 50 escudos por dia, mais 15 dias de multa à mesma
taxa.As penas foram suspensas por três
anos e os livros apreendidos foram declarados perdidos a favor do Estado
para serem destruídos, tendo os restantes arguidos sido condenados a
penas de 45 dias de prisão, igualmente substituíveis por multas, exceção
feita a Luiz Pacheco, dispensado de a pagar, devido à sua situação
económica.A polémica “Antologia de Poesia
Portuguesa Erótica e Satírica” nasceu de um desafio lançado por Fernando
Ribeiro de Mello a Natália Correia que, não obstante ter visto
sucessivos livros seus serem apreendidos pela censura do Estado Novo,
aceitou o convite do irreverente editor da extinta chancela Afrodite,
que era também seu amigo.Este jovem filho
de um abastado causídico do Porto, que chegou à capital portuguesa em
1963 como declamador de poesia e que ficou conhecido como o “Dali de
Lisboa”, pela figura excêntrica, de traje impecável e bigode afilado,
não demorou a integrar o núcleo duro de 'habitués' do salão de Natália
Correia, recorda o editor da Ponto de Fuga, Vladimiro Nunes, no texto
introdutório da obra agora editada.“Com a
anfitriã dos míticos saraus que decorriam no quinto andar da rua
Rodrigues Sampaio, 52, o editor da Afrodite partilhava o espírito
libertário e a irresistível tentação do risco”, escreve Vladimiro Nunes.Quando
a Antologia foi publicada, um relatório do Secretariado Nacional de
Informação (SNI) dava conta de que, “apesar do pretensioso prefácio da
autora da seleção, eivado de tendências sartrianas e das intenções que
daí derivam, não é possível admitir que seja viável a circulação deste
livro em Portugal, dado o seu caráter pornográfico. (…) Nestas
condições, propõe-se a proibição rigorosa deste livro”.Prevendo
esta eventualidade, Ribeiro de Mello “foi rápido no contra-ataque” e,
com o consentimento de Natália Correia, abriu caminho à produção de uma
edição “pirata”, sem as ilustrações de Cruzeiro Seixas, e indicando como
origem geográfica o Brasil, o que lhe permitiria escapar ao crivo
censório, como o eram todos os livros importados daquele país.Os
livros venderam-se todos, tendo sido esta edição alternativa a chamar a
atenção do público leitor e a contribuir para a fama da Afrodite, na
altura ainda uma incipiente editora, que, antes da edição original,
antes só tinha publicado um livro, o “Kama Sutra”, rapidamente proibido,
mas que, durante os anos do processo, não evitou novos escândalos, com
títulos como "Filosofia na Alcova", de Sade, que levou de novo Fernando
Ribeiro de Mello a tribunal.Esta reedição
da obra de Natália Correia pela Ponto de Fuga reproduz a original: além
das ilustrações de Cruzeiro Seixas, e do prefácio e notas da autora, por
debaixo da sobrecapa – que apresenta uma foto de uma jovem Natália
Correia – esconde-se uma réplica da capa original, em tudo igual à da
edição da Afrodite, exceto o nome da editora.A
Ponto de Fuga acrescentou-lhe ainda novos textos introdutórios e
reproduções de documentos que contextualizam este marco histórico na
edição em Portugal.Numa introdução
intitulada “Versos escarlates, risos amarelos e lápis azuis: crónica de
um livro proibido”, Vladimiro Nunes conta toda a história desta
antologia, desde a sua génese, incluindo o processo judicial a que deu
origem, apresentando cópias das notícias da imprensa da altura, dos
relatórios da censura e dos autos da polícia.Segue-se
um outro texto introdutório, da autoria de Francisco Topa, professor da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, intitulado “Fahrenheit
451” – uma alusão ao romance de Ray Bradbury que se passa num futuro
onde todos os livros são proibidos -, no qual se debruça sobre o
processo judicial levantado contra a antologia de Natália Correia.Natália Correia nasceu nos Açores, em 13 de setembro de 1923 e morreu em Lisboa, em 16 de março de 1993. Poetisa,
ficcionista, contista, dramaturga, ensaísta, editora, jornalista,
cooperativista, deputada à Assembleia da República (primeiro pelo PSD,
depois como independente, pelo PRD), foi uma das vozes mais proeminentes
da literatura e da cultura portuguesas na segunda metade do século XX,
tendo resistido energicamente ao Estado Novo e aos radicalismos do
pós-25 de Abril.“Ecuménica e eclética,
filantropa e idealista, anteviu um novo tempo, que garantisse a paz, a
dignidade humana, a justiça social e o direito à diferença como raízes
indeléveis da democracia”, descreve a editora.