Ainda há quem fuja da escola para brincar ou ganhar dinheiro
22 de jun. de 2024, 08:09
— Silvia Maia/Lusa
Iuri
chegou a ter “a polícia à perna”, porque passava as tardes a fumar
charros com um grupo pouco recomendável. Alexandra faltava diariamente
às aulas e, quando ia, “respondia mal aos professores”. Erico começou a
trabalhar na lavoura e depois numa pizzaria para ajudar nas contas em
casa até que, um dia, desistiu de estudar.Nenhum
gostava da escola. Todos a abandonaram, mas foram encontrados por
técnicos que lhes ofereceram um projeto alternativo. Aceitaram o desafio
e escaparam às estatísticas que colocam os Açores como a segunda região
da Europa com a maior taxa de abandono escolar precoce, só ultrapassada
por uma região da Roménia, revelou à Lusa o sociólogo Fernando Diogo.As
vidas destes três jovens, de diferentes zonas da ilha de São Miguel,
cruzaram-se na Perkursos, um projeto educativo que recebe anualmente
cerca de 90 alunos entre os 14 e os 25 anos. “A
maioria já está em abandono escolar. Não conseguem estar na escola.
Geralmente, faltaram a algumas aulas no 1.º período e no 2.º período já
não apareceram. Ficaram pelos corredores, não foram um dia, não foram
dois… até que deixam de ir”, conta à Lusa Mónica Bulcão, diretora
técnica da escola.Chegam sinalizados por
várias entidades, desde escolas a comissões de menores, mas também
tribunais e segurança social. As histórias de absentismo de Iuri,
Alexandra e Erico também já estavam registadas nos processos na Comissão
de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). Iuri
recorda que quando ia às aulas, sentava-se nas últimas carteiras e
“achava piada ao professor não chatear”: “Podíamos fazer o que
queríamos”, recordou. Mas nos testes, falhava.Quando
confrontados diariamente com “os maus resultados, os jovens tendem a
desistir”, salientou o sociólogo e também investigador do Centro
Interdisciplinar de Ciências Sociais CICS-NOVA da Universidade dos
Açores.Foi o que aconteceu com Iuri.
Começou a faltar aos 12 anos. Esquecia as obrigações escolares por um
jogo de futebol ou um mergulho no mar, até nos dias “de inverno quando
fazia sol”.Em frente à escola, juntava-se
um grupo com “alto som, a fumar” e Iuri acabou por trocar os colegas de
turma pelo grupo do outro lado a rua. Aos 17 anos, voltou a chumbar por
faltas no 8.º ano e percebeu que tinha de mudar.Pairava
sobre ele a ameaça de ser penalizado pela CPCJ. No limite, poderia ser
retirado à família e até enviado para uma família de acolhimento do
continente, contou à Lusa o diretor da Escola Básica Integrada de Rabo
de Peixe, André Melo, onde há registos de alunos já enviados para
Lisboa.Em 2022, as CPCJ dos Açores
receberam 433 comunicações de potenciais situações de perigo reportadas
pelas escolas. Nesse ano, houve 353 denúncias por estar em causa o
direito à educação e 278 casos de absentismo escolar.O
absentismo escolar e o insucesso terminam muitas vezes em abandono,
alertou o sociólogo Fernando Diogo. Para combater o problema, o Governo
regional anunciou, em maio, um plano para baixar de 21,7% para 15% o
abandono escolar precoce até 2030.Uma das
medidas é identificar os alunos que desaparecem do sistema sem terminar o
12.º ano, disse a Secretária Regional de Educação.Este
ano, pela primeira vez, os serviços identificaram os que tinham deixado
de estudar antes do tempo para lhes propor que “enveredassem por outros
percursos de formação”, afirmou Sofia Ribeiro.A
Perkursos é um desses projetos. Esta é uma escola diferente. Há um
estúdio de som, onde os alunos podem gravar músicas ou podcast, uma
gigantesca sala para aulas de expressão dramática. Há um espaço ao ar
livre, onde até podem fumar. Mas os alunos apontam como principal
diferença a relação com os professores. “Nem
podemos dizer que são professores, porque os tratamos mais como amigos.
Estão sempre com a gente, sempre disponíveis”, contou Iuri, que chegou à
escola, fez “tudo direitinho e, numa semana, o processo foi arquivado”.
No ano passado, terminou o 9.º ano e agora está empenhado em concluir o
secundário. No entanto, nem todos os
casos são de sucesso, reconheceu Mónica Bulcão. Aqui, também há muito
absentismo. “Eles já levaram muita pancada na vida por vários motivos e o
primeiro trabalho é recuperá-los como pessoas”, sublinhou o psicólogo
da escola.Segundo João Pedro Nunes, na
Perkursos trabalha-se para que acreditem que “vão conseguir fazer as
contas e saber o inglês que precisarem para a sua vida”.Para
a professora Paula Medeiros, a quem coube, este ano, a tarefa de
ensinar Matemática, muitas vezes o sucesso está apenas em ver os alunos
entrar na sala: “Aqui é um refúgio, porque a própria família nem sempre é
a ideal, nem sempre é aquele porto de abrigo que deveria ser”,
sublinha. Alexandra Garcia é um desses
casos. Disse que a sua família “não é um exemplo a seguir”: “Nunca fomos
muito unidos”, lamentou a rapariga de 19 anos que está agora a tentar
terminar o 9.º ano.“Desleixei-me por causa
de assuntos em casa”, explicou, contando que começou a faltar aos 14
anos. Chegou a estudar Agropecuária num curso profissional, mas do 8.º
para o 9.º ano o curso não abriu.“Adoro
aquela área. É uma paixão minha de anos sem fim mas eles fecharam-me
esse caminho e voltei a cair, a rebaixar-me muito e a desmotivar-me”,
recordou, contando que já foi acompanhada por “psicólogos, psiquiatras e
pedopsiquiatras pela vida fora”.As
escolas açorianas têm um rácio de psicólogos por aluno muito superior à
media nacional, adiantou a secretária regional de Educação, indicando
que há um psicólogo para cada 542 alunos açorianos (mais 28% do que no
continente). As turmas também são muito mais pequenas: “No 1.º e 2.º
ciclos, uma turma padrão tem 18 alunos”, exemplificou. No
entanto, a taxa de abandono escolar precoce no arquipélago é quase três
vezes superior à media nacional (8%), um fenómeno que “ninguém sabe
explicar”, constatou o sociólogo Fernando Diogo.O
investigador está a desenvolver um projeto informal que aponta como
hipótese o tecido social do arquipélago, onde há mais pobreza e menos
escolaridade: A pobreza atinge 26,1% dos habitantes e a maioria da
população não concluiu o 9.º ano.Alexandra
reconheceu que “não nasceu num berço de ouro” e o seu “projeto de
futuro é concluir o 9. ano”, emigrar e trabalhar muito.Também
Erico Pontes, agora com 20 anos, nasceu e cresceu numa família pobre e
só quer fazer o 9.º ano. Nessa altura, deverá voltar a integrar as
estatísticas do abandono escolar precoce, que contabiliza os jovens
entre os 18 e os 24 anos que deixaram de estudar sem concluir o
secundário.Apesar destes casos, as
estatísticas mostram uma melhoria desde o início do século. No ano
passado, a taxa rondou os 27% e este ano desceu para 21,7%. Sofia
Ribeiro disse que é “bastante animador”, mas reconheceu que ainda “é
preciso continuar a trilhar esse percurso”.