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“A Páscoa só pode ser aquilo que foi há 2000 anos: uma libertação e uma resistência” diz padre Teodoro Medeiros

Teodoro Medeiros, professor de Sagrada Escritura no Seminário Episcopal de Angra, afirma que, nesta Páscoa, “Guerra, doença e desalojamento: estas realidades dizem-nos que precisamos discernir soluções com os olhos da fé, agora ainda mais do que antes”. Sobre a Diocese estar em sede vacante, o sacerdote apela a que os cristãos açorianos sejam mais dependentes de Deus e dos seus desígnios e que deixem fluir as dinâmicas das paroquias.



Autor: AO Online

Açoriano Oriental - A diocese de Angra passa esta Páscoa em sede vacante. Como chamar os cristãos à participação litúrgica quando falta o pastor maior da Igreja nos Açores?

Teodoro Medeiros - O Bispo é o vigilante (epíscopos em grego), o supervisor de uma diocese, a autoridade à qual se reportam as mais importantes questões do governo e vivência das paróquias. É, além disso, o garante da unidade e o impulsionador da dinâmica particular do momento que se vive. Como sucessor dos Apóstolos, a sua autoridade hierárquica é um carisma específico, um dom para a Igreja, impulsionando-a a seguir os caminhos que o Espírito Santo propõe.

A ausência desta figura pode ter consequências negativas, pode desorientar a busca de soluções de fundo, a resolução de questões mais prementes. Mesmo assim, é prematuro declarar um estado geral de orfandade: a vida das comunidades tem a dinâmica e a vitalidade suficiente para que se continue a crescer na fé. Na Igreja não vigora um sistema monárquico: os pastores estão já no terreno, os carismas vêm de Deus, e o Mestre está presente sempre que o invocamos. Jesus também disse para não chamarmos a ninguém mestre, pai, doutor (Mateus 23, 8-10).

Este é, portanto, o momento de rezarmos, pedir ao Senhor da messe que envie mais trabalhadores (Mateus 9, 38). Recordo aliás a grande rede de oração que se fez em 2015, quando D. António Sousa Braga estava muito doente: ele não só superou a doença como voltou ainda à nossa companhia por algum tempo. Os cristãos devem sentir-se agora mais dependentes de Deus e dos seus desígnios; a oração e a esperança são renovadas a cada passo decisivo, as comunidades pedem nesta ocasião que a sua figura maior seja um homem inspirado por Deus: é essencial que seja alguém imbuído do espírito do Evangelho, simples, disponível, capaz de dialogar com a sociedade, levar ao otimismo e à consciência do valor da fé.

AO - O que é a Páscoa à luz dos nossos dias?

Teodoro Medeiros - A Páscoa só pode ser aquilo que foi há 2000 anos: uma libertação e uma resistência. Há um antes e um depois, a Pesah é a passagem a um estado novo, o abandono das escravidões. Temos de começar daí, da consciência de haver em nós o escravo que não se habituou ainda ao seu novo estado… os antigos hábitos regressam uma e outra vez. Somos nós a agarrar o jugo e a amá-lo mais do que a condição de homem livre. No contexto atual, a subjugação é de nos desligarmos do resto da Criação, ela que espera a revelação dos filhos de Deus (Romanos 8, 19).

Mais especificamente, as nossas relações sociais estão cada vez mais mecanizadas: o eu propõe-se perante o mundo como perante uma audiência, da qual se espera o aplauso ou a cisão. A tecnologia facilitou a comunicação em massa, mas também exacerbou a dissensão e o confronto: a polarização das opiniões ajuda a criar trincheiras psicológicas, favorece o insulto. E aí deve-se resistir, preservar a dignidade do outro, não somente bloqueá-lo para sempre, condená-lo.

Como diz o filósofo Byung-Chul Han, desenvolveu-se um mecanismo global em que o indivíduo quer sobressair, o grande objetivo sendo o diferenciar-se, chamar a atenção dos outros para si. É um auto-engrandecimento narcisístico e constitui um círculo vicioso, porque todos se tornam radicalmente iguais, precisamente porque todos querem ser o diferente. O indivíduo descobre então machado já está colocado na raiz de todas as árvores (cf. texto grego de Mateus 3, 10).

Como já se notou muitas vezes, a própria linguagem informática usa conceitos teológicos: em vez de “salvar” ou “justificar” um documento, é preciso salvar quem pensa e age diferente; justificar a sua existência como vontade de Deus, como uma ação direta sem a qual o eu não pode crescer. Esta atitude é também aquilo que somos no dia a dia, o respeito que mostramos diante de alguém. Para se libertar, o eu tem de resistir à sua própria raiz.

AO - De que devem os cristãos jejuar nestes tempos?

Teodoro Medeiros - De tudo aquilo que é excessivo, de tudo aquilo que conduz à apatia, de tudo aquilo que cansa os outros. Para isso ser possível, cada um de nós tem de ser forte o suficiente para ser crítico de si mesmo. Não se trata de uma moral de autoajuda ou simples disciplina ascética: a fé em Cristo é uma tensão nunca resolvida e isso não é negativo, é a própria essência da vida e o diálogo que Deus estabelece connosco.

Para um sistema ser viável, ele tem de ter a capacidade de se renovar a partir de dentro. Recordemos como as estórias de conversão, desde S. Paulo a Bob Dylan, sempre apaixonaram o mundo: isto acontece porque nos reconhecemos aí, sabemos que esse processo existe dentro de nós.

 

AO - Como se mantém uma esperança na Salvação quando o mundo assiste a uma guerra desumana pela comunicação social?

Teodoro Medeiros - Mas essa é precisamente a prerrogativa de Deus: quando todas as soluções estão esgotadas, a quem se pode ainda recorrer? A Salvação não pode ser apenas localizada, é mais do que isso: quando dizem de Jesus que salvou os outros, mas não pôde salvar-se a si mesmo, teriam razão? Aquela observação refere-se a uma salvação imediata, de último recurso, mas a Salvação que Jesus traz é uma nova Criação (2 Coríntios 5, 17).

A salvação de que fala S. Paulo é aquela que acontece na esperança (Romanos 8, 42): a Criação geme e sofre as dores de parto, a libertação do próprio corpo.

Vivemos já uma nova Criação, a reconciliação de Deus com o mundo, mas estamos sujeitos ainda às leis do mundo. Deus é minimalista, os seus milagres (a Encarnação de Jesus, a sua Ressurreição, qualquer cura milagrosa) passam despercebidos ao olho nu, não funcionam separados da confiança n’Ele, a fé.

Deus pretende que participemos, acolhamos os seus dons, inscritos no nosso íntimo desde o início, a nossa natureza mais essencial. Se os impérios humanos persistem, se se perseguem seguranças estratégicas desequilibradas, Deus não passa um apagão, ele sofre no inocente. Deus estará ausente? Sim, dos corações que o expulsam, das estruturas montadas para a destruição, dos tronos onde a vangloria reina… e das mentes indiferentes, Deus afasta-se e age no segredo. Sempre foi assim, mesmo quando se justificavam os crimes de algum colonialismo.

A Salvação integral só se pode fazer presente no íntimo, não cai do Céu, em direto no noticiário.

 

AO - Uma pandemia, uma guerra na Europa e uma crise sísmica nos Açores. Esta é uma Páscoa com muitos motivos para ainda ter fé?

Teodoro Medeiros - Como em qualquer convalescença, é preciso tomar o pulso à realidade de forma gradual, dar passos seguros. A pandemia deixou mazelas psíquicas e humanas em todos nós, sentimo-nos filhos de um deus menor: é necessário fazer fisioterapia às nossas relações sociais, aos nossos hábitos, à nossa reclusão, é preciso retomar o ritmo natural da respiração. Precisamos de rituais que celebrem (na medida do já possível) o regresso à vivência mais de acordo com o nosso potencial humano.

Não somos alheios às crises, temos tido muitas, e a fé, tal como as amizades, conhece-se nas ocasiões. Em grego Krisis significa julgamento, decisão. É nestes momentos que aprendemos a fazer, a dar resposta, tal como os cintos de segurança, que se tornaram lei depois de acontecerem os acidentes. O apoio aos refugiados, as medidas de prevenção e as campanhas de solidariedade fazem parte do vocabulário religioso desde há muito tempo. A defesa dos indigentes de todo o tipo pertence à medula do Evangelho, Jesus manifestou a sua Missão sobretudo a eles, até ao último momento.

Guerra, doença e desalojamento: estas realidades dizem-nos que precisamos discernir soluções com os olhos da fé, agora ainda mais do que antes.

 

AO - O que se pede aos cristãos neste tempo do calendário litúrgico?

Teodoro Medeiros - Sejamos sinal de não conformismo, não pensemos nos nossos males, primeiro. Façamos oração assertiva, revisão de vida, religuemos a comunidade. A questão não se põe apenas em termos de moral direta, porque se não somos culpados dos males do mundo, nem por isso estamos isentos de os remediar. Não se trata apenas de encetar ações, mas de perguntar se o meu próprio modo de vida é viável, se torna viável a vida dos outros.

A nossa vivência aponta para algo maior do que nós? Temos um exemplo recente deste inconformismo na Via Sacra deste ano em Roma, com o Papa: estava previsto que na décima terceira estação falassem uma família russa e outra ucraniana. Vários ucranianos, entre os quais o arcebispo Sviatoslav Shevchuk, manifestaram descontentamento com esta decisão, pediram que não avançasse, consideraram um sinal ambíguo, dadas as circunstâncias. Não será, pelo contrário, um modo simples de mostrar que a guerra é que destrói as coisas mais simples?

Werner Herzog fez uma série documental sobre os condenados à morte, há uns anos. Perguntaram-lhe se não estava a correr o risco de humanizar os criminosos, ao que ele respondeu, com naturalidade, que não estava a humanizá-los, uma vez que eles são humanos. Não podemos estar nestes dias ao pé da mesa da Última Ceia, contemplar o Calvário, e depois ir tranquilamente comer um gelado, conferir os descontos do comércio: aquelas realidades reveem a sintaxe da nossa alma, abrem-nos ao profético, a uma vivência diferente, que não se versa em ditames morais simplistas.

O profético é da ordem do simbólico: uma ação, como a de Jesus que perdoa os algozes, não pertence a um programa, fala antes do que não sabemos totalmente, do que está escondido, dos segredos que Deus só nos transmite quando não compreendemos totalmente. Sobre a guerra já tudo se disse e o seu contrário: a sua única utilidade é que abre a possibilidade de se construir uma paz mais segura. Como se faz isso? Parece que ninguém sabe. Os pacifistas insistem que se a Ucrânia se tivesse rendido, não haveria já conflito, o problema teria agora outro nome. Estão errados?

Mas, voltando à pergunta, o que se nos pede é que não abdiquemos do Evangelho quando pensamos.

 

AO - Como gostaria que os cristãos açorianos vivessem esta Páscoa?

Teodoro Medeiros - Na Metamorfose, de Kafka, pode-se ler uma alegoria da ausência de criatividade: quando tudo se torna um horário, a nossa imaginação morre. O protagonista acorda uma manhã e vê-se transformado num grande inseto. O indivíduo foi esmagado, deformou-se, deixou de ser uma pessoa interessada, aborreceu-se de si mesmo. É uma visão surreal de um perigo que nos assiste a todos: o de subjugar o espírito (e o Espírito), viver como escravo por opção própria.

Não será apenas coincidência que sejam os jovens os menos interessados na Igreja: usamos de pouca imaginação, aborrecemos. Evidentemente, nem toda a imaginação é do melhor gosto, mas o caminho do conformismo não ajuda a nada. Leonard Cohen escreveu na canção Suzanne que Jesus se afunda no meio da nossa sabedoria como uma pedra. Se tudo está determinado, tudo está morto. Precisamos de nos reconhecer pequenos, crianças que ouvem dos adultos e esquecem repetidamente. O adulto aqui é a Páscoa, essa revolução silenciosa, essa nova Criação que estamos sempre a esquecer.