Francisco Medeiros nasceu no Faial mas reside no Pico
31 de dez. de 2017, 20:25
— Célia Machado
O percurso
profissional é extenso e a vida tem sido bastante preenchida. Por isso, afirma:
"Estou muito satisfeito com tudo aquilo que fiz; sinto-me
realizado".
Francisco
Medeiros nasceu a 25 de julho de 1931 na casa dos pais no Bairro Mouzinho de
Albuquerque, na freguesia das Angústias, mas a ligação com o Pico é forte: do
lado materno tem raízes do lugar das Sete Cidades e do paterno da Areia Larga,
do qual herdou o apelido Xatinha que orgulhosamente mantém. "O meu avô, os
seus irmãos e os primos foram daqueles que, entre outros, com as suas embarcações,
ajudaram a salvar várias pessoas no naufrágio da barca francesa 'Caroline', em
1901, junto à Areia Larga, no Mar da Meia Broa. Os Xatinhas distinguiram-se na
pesca. Agora, há Xatinhas espalhados pelos quatro cantos do mundo", frisa.
Sendo o mais
novo dos cinco filhos do casal (três rapazes e duas raparigas) competia-lhe,
ainda pequeno, acompanhar o pai no campo, algo que Francisco não gostava de
fazer: "Nós tínhamos um prédio de dois alqueires e eu ia com o meu pai
semear as batatas e fazer os trabalhos necessários na terra mas nunca gostei da
agricultura", confessa-nos. Bom mesmo era nadar na Praia do Porto Pim o
que fazia, às vezes faltando às aulas na Escola da Canada: "Quando eu
faltava à escola com outros rapazes, tomávamos banho nus. Se não alagássemos a
roupa interior as nossas mães não desconfiavam de nada. Mas, aparecia o
cabo-de-mar e juntava as nossas roupas, que havíamos deixado dentro de algumas
embarcações. Quando as devolvia, dava-nos uma chapada".
Os tempos eram
difíceis. Pelos nove/dez anos, o pai conseguiu-lhe um trabalho temporário
durante o verão: "Chegou à Horta um navio a vapor para limpar as suas
caldeiras. Só uma pessoa de muito pequeno porte podia entrar nelas. Por isso, o
trabalho era feito por uma criança que permanecia lá dentro durante duas horas
e depois descansava uma, voltando em seguida ao interior para passar,
novamente, a escova no depósito. Éramos quatro ou cinco crianças e, naquelas
cinco horas, ganhávamos mais do que um mecânico durante oito", recorda.
Todo o dinheiro
contava e, ainda criança, estava ciente das dificuldades da vida, pelo que
assim se percebe como, também pelos seus dez anos, tenha aumentado o preço das
couves para garantir mais alguns escudos em casa. "Semeávamos um ano trigo
e outro milho e, junto às paredes do nosso prédio, plantávamos couves para
aproveitar o espaço. Como tínhamos em abundância, o meu pai disse-me para
encher um cesto redondo alto, daqueles em que antigamente eram transportadas as
uvas durante a vindima. Antes de ir para a cidade, o meu pai deu-me indicações
para vender as couves mais pequenas a meio escudo e as maiores a um escudo. Na
Horta estava aquartelado um batalhão que tinha vindo do continente. Ia eu com o
cesto de couves quando um sargento perguntou se eram para vender e qual o
preço. Eu respondi que eram todas a um escudo. Contei as couves, vendi-lhas e
fiquei de voltar lá, num outro dia, para vender-lhe mais algumas. Eu fiz o meu
negócio. As couves eram boas, de talo grado, e um escudo era muito
dinheiro", afirma.
O pai, que era
cabo-de-mar, apanhava na costa do Pasteleiro, à noite, com uma tarrafa, mujas e
salemas, que o irmão depois vendia no mercado. E, na "marca" das
cavalas, pescava, para além destas, chicharros. "Tínhamos daqueles barris
de quinto cortados a meio a fazer de celhas. Tirávamos a tripa aos chicharros e
salgávamos o peixe. De inverno, a minha mãe vendia o peixe às pessoas que
viviam nas barracas da doca. Por vezes, iam lá a casa comprar um escudo de
chicharros e não pagavam. A minha mãe deixava ficar mesmo assim. Só por aí, ela
comprou um lugar no céu".
Aos 11 anos fez
o exame da quarta classe, na Escola Coronel Silveira Leal, na Praça da
República, e foi aprovado com distinção. Era chegada a hora de ganhar dinheiro.
"O meu pai falou com o diretor das Obras Públicas e arranjaram-me trabalho
na pedreira da doca. Lá havia uns indivíduos, artistas, que aparelhavam a pedra
para calcetar o caminho. O que eu tinha de fazer era dar-lhes a pedra para
aparelharem e, no final do dia, contar quantas pedras tinha cada um aparelhado;
anotava num papel os números e entregava-o ao mestre da pedreira. Ali
recebíamos à quinzena", diz.
Estes terão sido
os primeiros dos vários ofícios de Francisco Medeiros. Para tal, valeram-lhe a
sua versatilidade e esperteza.
De operário na
descarga do carvão a cabo de mar
A juventude de Francisco Medeiros fez-se de trabalho e
da procura de um futuro melhor. Com apenas 12 anos
foi operário indiferenciado na descarga de carvão, nos armazéns da Fayal Coal,
trabalhou na empreitada de alargamento da Estrada do Pasteleiro, aos 14 anos,
já com cédula de inscrição marítima, iniciou-se na atividade piscatória e na de
estivador, com 17 andava na caça à baleia, aos 18 fez o exame do 2.º ciclo no
Liceu Nacional da Horta e com 20 anos ingressou no serviço militar, em Lisboa,
onde concluiu o curso de sargento amanuense. Em 1953, com 22 anos, foi, na
cidade da Horta, escriturário na Delegação da Direção Geral dos Serviços
Hidráulicos e encarregado de obras portuárias nos portinhos do Cais do Pico e
Calhau, na Candelária, mantendo estas funções durante três anos. No Calhau
chegou a ter 45 homens sob a sua responsabilidade. "Ganhava 23 escudos por
dia mais duas horas extraordinárias", adianta. Entretanto, concorreu a
cabo-de-mar e conseguiu vaga em janeiro de 1957; prestou serviço nos portos da
Horta e do Corvo, tendo permanecido dois anos na mais pequena ilha, de março de
1957 a fevereiro de 1959; ainda em 1959 foi colocado nas Flores - foi o
primeiro cabo-de-mar a desempenhar funções no Porto das Lajes. Ali ficou quatro
meses até os seus serviços serem necessários na ilha do Pico. Foi aqui que
chegou a 9 de junho de 1959, a bordo do navio “Carvalho Araújo”, por troca com
o cabo-de-mar Freitas, para ocupar o seu lugar na Delegação Marítima de São
Roque do Pico. Nesta acumulou as funções de escrivão e prático do Porto do Cais
do Pico.
No Monte, na Candelária, já havia conhecido Maria da
Conceição Goulart, mulher com talento para a renda, com a qual casou e teve
dois filhos: Francisco Medeiros e Ana Paula Medeiros.
Se os dias eram passados na Delegação Marítima de São
Roque, as noites eram à mesa, em casa, no Cais do Pico, em trabalho particular:
"A luz era desligada à meia-noite mas até lá eu aproveitava para desenhar
barcos e alterações a embarcações que me eram solicitadas pelos proprietários
das mesmas".
A reforma chegou no final da década de 1980, aos 57
anos, mas, mesmo depois, chegou a ser recebido, com honras de almirante, numa
corveta da Marinha atracada no Porto do Cais do Pico. Foi um equívoco que muito
fez rir.
Ao serviço da sociedade
São já mais de 50 anos de vida passada em São Roque do
Pico, com Francisco Medeiros, sempre que possível, a dar o seu contributo para
o desenvolvimento da sociedade, principalmente ao fazer parte dos corpos
diretivos de diversas instituições: sócio-fundador do Clube Naval de São Roque
do Pico e do qual foi o primeiro presidente da Assembleia-geral e, igualmente,
sócio-fundador dos Amigos do Museu dos Baleeiros; na Santa Casa da Misericórdia
de São Roque, da qual é Irmão desde 1959, foi provedor de 1989 até 1998, entre
outros cargos para os quais foi eleito naquela instituição; integrou os órgãos
sociais da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de São Roque, do
Vitória Futebol Clube, da Filarmónica Liberdade do Cais do Pico e da Liga dos
Amigos de São Roque e ainda fez parte da Comissão de Proteção de Crianças e
Jovens de São Roque do Pico.
Após a crise sísmica de 1973, foi nomeado pelo
governador civil da Horta para apoiar os sinistrados do concelho de São Roque.
Foi ainda correspondente dos jornais faialenses O Telégrafo e Correio
da Horta e também do rádio Clube Asas do Atlântico, de Santa Maria;
colaborou ainda com a Rádio Cais, do Pico, os jornais Diário Insular,
da ilha Terceira, Tribuna das Ilhas e Jornal do Triângulo, ambos
com sede no Faial, e O Dever, das Lajes do Pico. Nos últimos anos tem
mantido a colaboração com os semanários picoenses Ilha Maior e Jornal
do Pico, neste último tendo, inclusivamente, sido seu diretor interino,
ainda que em escassas edições.
Em 2012, durante o festival Cais Agosto, lançou o livro Homens
de Olhos Encovados e Outras Estórias de Homens do Mar, no qual recorda mais
de uma centena de vigias da baleia que marcaram a baleação nas nove ilhas e
partilha alguns episódios que tiveram como pano de fundo o mar açoriano.
Trata-se de uma obra que contribui, sobretudo, para a perpetuação da história
da baleação. Este ano, no Dia do Município de São Roque, foi distinguido pela
autarquia.
Apesar de tudo
isto, as saudades do tempo de meninice no Faial são muitas, das brincadeiras
com os amigos, da vida familiar. Ainda se enchem os olhos de lágrimas quando
recorda esses momentos e também quando nos fala da explosão de uma mina nos
armazéns da Fayal Coal, na década de 1930. era lá que o irmão António
trabalhava e quando se deu o acidente a população acorreu ao local. Por
instantes, a família pensou que também António havia falecido. Felizmente,
António saiu ileso mas a dor sentida, ainda que por breves instantes, pela
família foi algo que Francisco Medeiros nunca esqueceu.
O casamento de Francisco
Medeiros já chegou aos 60 anos, a descendência vai nos quatro netos e o mundo
continua a atrair a curiosidade do antigo cabo-de-mar porque, para o Xatinha,
nunca é demasiado tarde para aprender.