Açoriano Oriental
Relatar de ouvido, a singularidade de um comentador desportivo cego

José Carlos é telefonista de profissão, mas as suas verdadeiras paixões são o desporto e a rádio. Faz relatos para vários órgãos de comunicação social e orgulha-se de ser, provavelmente, o único cego em Portugal que faz comentário desportivo.

Relatar de ouvido, a singularidade de um comentador desportivo cego

Autor: Lusa/Ao online

“Sou capaz de estar a ouvir quatro rádios ao mesmo tempo e de estar atento a tudo o que se está a passar”, disse à Lusa, confiante, dando como exemplo um caso em que o jornal espanhol ‘Mundo Deportivo’ lhe pediu a lista de convocados para um jogo entre o Sporting e o Barcelona, em eliminatória para a Liga de Campeões.

“Eu tinha a lista gravada em braille e consegui ler e ouvir três rádios ao mesmo tempo”, acrescentou José Carlos Costa, que é cego de nascença.

Com 62 anos, começou na Rádio Comercial em 1981, na altura pela mão do jornalista Fernando Correia, sendo, possivelmente, das únicas pessoas com deficiência visual que faz relatos e comentários desportivos.

“Poucos deficientes visuais podem orgulhar-se de ter tanta longevidade a nível da informação desportiva. Não tenho conhecimento de qualquer cego no mundo que ande há 37 anos a fazer informação desportiva”, sublinhou.

Da Rádio Comercial passou, em 1996, para a Rádio Imprensa, uma central de resultados desportivos, e é graças ao trabalho que aqui faz que, mais tarde, em 2003, foi convidado para ser o responsável pela apresentação do painel de resultados desportivos na rádio Granada FM, em Vendas Novas, todos os domingos, a partir das 21:00.

José Carlos Costa disse à Lusa que quando esta oportunidade surgiu, foi o concretizar de um sonho de infância, desde a altura em que ouvia a rádio desporto, na Emissora Nacional, pelas vozes de Artur Agostinho, Fernando Pires, Manuel Aragão ou Fernando Correia.

“Eu andava com um balde de praia a brincar às rádios e a inventar programas de desporto. Alguns resultados eu escrevia e fixava para depois relatar”, recordou.

As memórias recuam mesmo ao tempo em que passava férias numa colónia em Penafirme, Torres Vedras, então com nove anos, e àquela altura em que resolveu imitar Artur Agostinho, depois de a monitora ter pedido a todos para estarem em silêncio.

Ficou de castigo, não comeu bolo ao pequeno-almoço e não foi à praia.

“Mas durante o castigo sonhei que um dia havia de fazer isto na rádio”, afirmou, acrescentando que é preciso “acreditar sempre nos sonhos” e que a “esperança é a última a morrer”.

Admitiu que “há muita gente que não acredita” que ele faça comentário desportivo porque é cego e que, por isso, não perceba como é que consegue acompanhar tudo o que se passa em campo.

Recuando a 2008, lembra-se de uma vez ter ido a Aljustrel para assistir a um jogo da Taça de Portugal em hóquei em patins, requisitado para fazer comentário para a Rádio Barcelos e para a Rádio Voz de Alenquer.

O jogo era entre o Porto e o Barcelos, o primeiro estava a ganhar e José Carlos comentou que o “Barcelos estava a perder gás”.

“Eu notei, quando os jogadores do Barcelos jogavam, que estavam a patinar mais lentos. O Barcelos, na altura, era uma equipa cansada e o Porto estava a trocar a bola a alta velocidade e isso via-se pelo som do stick”, explicou.

Com uma gestão de tempo feita com muito rigor, José Carlos Costa começa a sua atividade ao sábado com o campeonato nacional de futebol de juniores das primeira e segunda divisões, depois com a distrital do Algarve, a seguir com o andebol, o basquetebol e o hóquei em patins.

Habitualmente recorre às rádios para ouvir os relatos e depois fazer o seu comentário desportivo, mas também faz “recolha exaustiva de informação”, além de recorrer à sua “boa rede de contactos”, normalmente a partir da sua redação, em casa.

Sempre com três telemóveis na sua mala, não teve qualquer dificuldade em exemplificar para a Lusa como muitas vezes consegue estar com um equipamento num ouvido, outro no queixo para fazer o relato, ao mesmo tempo que com a mão livre vai escrevendo em braille.

Confidenciou que tem uma dívida muito grande para com o desporto, que foi a sua tábua de salvação quando, em 1984, ficou dois anos sem trabalhar à espera de ser recolocado, depois de o instituto onde trabalhava ter sido extinto.

Atualmente trabalha como telefonista no Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), na avenida da República, para onde vai de transportes públicos desde a sua casa em Campo de Ourique.

Com base nessa experiência, José Carlos Costa aproveitou para alertar para alguns dos problemas que afetam, de uma maneira geral, as pessoas cegas, desde os automobilistas que não respeitam passadeiras, esplanadas que ocupam passeios quase na totalidade, passeios rebaixados que não permitem perceber onde acaba o passeio e começa a estrada ou semáforos sem sinal sonoro.

Por fim, e como desejo que gostava de ver concretizado, José admitiu que ficaria feliz se todas as pessoas cegas pudessem trabalhar e pudessem estar integradas na sociedade, pois isso seria uma forma de quebrar o isolamento.

A 15 de outubro assinala-se o Dia Mundial da Bengala Branca, efeméride que serve para chamar a atenção para os direitos e necessidades das pessoas cegas, já que a bengala é o símbolo da sua autonomia, independência e segurança.


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