Autor: Gabriela Silva
São
vinte anos de histórias, de dramas e comédias, revistas à
florentina e teatro infantil. São sobretudo vinte anos de trabalho e
resistência. Com três momentos anuais de trabalho intenso, a
Jangada, enquanto grupo de teatro, mantém alguns nomes que nos
habituaram à sua presença desde sempre, mas mais de metade da
“frota” é renovada anualmente, muito ao sabor das colocações
de professores na escola e noutros serviços públicos da ilha de
onde emergem artistas que se vão afirmando nesta pequena ilha,
redescoberta agora pelos turistas de todo o mundo que a transformaram
também em local de peregrinação para quem gosta da natureza e
admira a sustentabilidade. Graças à pequenez do nosso aeroporto e às dificuldades da SATA que todos conhecemos, a ilha é ainda o
paraíso encontrado por Raul Brandão. A Jangada aproveita o momento
para lançar farpas aos locais, sempre com a mesma graça a que nos
habituaram os criadores de texto.
Os “piratas” deste ano, não deixaram de fora o alojamento local e o turismo. Com uma componente musical renovada, este ano trouxeram lindas vozes florentinas: Nísia Jerónimo, Joana Medeiros, Armando Meireles e André Pereira foram as vozes das canções de Fernando Gomes em quadros coloridas com um grupo de bailarinas que não deixou os seus créditos por mãos alheias: Carlota Gonçalves, Beatriz Lourenço, Jéssica Amaral, Marlene Costa, João Mário Cardoso, Santiago Alves, Jânia Vieira e Cláudia Dias tiveram nas mãos o segredo da cor, a alegria do movimento, o sorriso e a jovialidade que se impõe neste tipo de espetáculo. No palco das operações de todo este brilho, continuam a estar a Quina Brites e a Luísa Gonçalves que são realmente duas mulheres incríveis que a Jangada não pode perder. Este ano, Ana Peixoto, deu o seu toque de requinte aos chapéus lindíssimos com que desfilaram no palco. O Paulo Mateus é, de há muito, o responsável por uma parte do espetáculo que não pode correr mal. E nunca corre mal porque ele e o Pedro Lopes fazem com que tudo aconteça sem uma só falha.
Mas
o teatro é trabalho de equipa. E esta equipa nunca perde o norte.
Foi muito bonito ver em cena duas filhas de estrelas: Emília Valadão
foi buscar o estilo da mãe e mostra a mesma alegria e a mesma
vitalidade em palco. A Kathy Sousa legou-nos uma Jânia Vieira,
jovem, alegre, descomprometida e muito competente em palco. O António
Lopes e o Nuno Abreu compuseram os quadros dentro da harmonia a que
nos habituaram os criadores desta representação.
Textos e poemas, letras de canções com apelo cultural às nossas raízes históricas, humos à florentina e rábulas educadas e bricalhonas, arrancaram gargalhadas e aplausos das salas cheias que se deslocaram ao Museu de Santa Cruz das Flores para aplaudir esta equipa.
Deixei para o fim os
clássicos, aqueles que movem o barco e fazem andar esta Jangada
incrível: a Lília e o Tó Zé são pais do projeto neste registo. E
continuam a ser únicos no que fazem até porque sabemos que têm nas
mãos o leme da embarcação. Mas a Filipa Gouveia, o William Braga,
a Cristina Ribeiro e a Ana Salvador, saem literalmente da
normalidade. Qualquer deles poderia subir ao palco em qualquer parte
do país sem deixar mal quem os dirige. Este ano, irrompeu no palco o
vulcão Joaquim Salvador que complementou com uma categoria única,
alguns dos quadros, já de si fantásticos.
O
que mais me fascina na Jangada é esta capacidade de renovação,
este ir além do que parece possível, o serem sempre capazes de nos
surpreender. Faltam pessoas, há um entra e sai permanente nos
elencos, mas nada muda. Fica tudo inteiro. Fica tudo igual. Fica tudo
único. Fica sempre a Jangada.
No
outono, viajo sempre para Lisboa à procura de estímulos culturais e
o teatro faz sempre da minha agenda. Já vi em salas de espetáculo
nacionais muita coisa inferior à Jangada.
Naturalmente
que em grupos destes há sempre alguém que nunca falha. Esse alguém
é o Joaquim Salvador. Um artista que faz do palco a sua casa e da
arte a sua morada permanente, mas também faz das Flores, há vinte
anos, parte da sua vida e da sua lenda pessoal. Casado com Sónia
Lapa, uma mulher que, sendo sua parceira no palco, é também uma
pintora incrível e um ser humano único. Este casal, faz da vida um
serviço, da maneira mais bonita que se possa imaginar. E vir às
Flores, durante vinte anos consecutivos, liderar equipas de pessoas,
é de alguém muito especial. O palco tem um “back stage”, tem
criação e ensaios, tem decisões e dificuldades. Eu diria que é
nos camarins que os artistas se revelam. Estar na linha da frente de
todas as decisões, exige um profundo respeito pelas pessoas, mas
também uma grande resiliência intelectual e emocional. O Joaquim
preenche todos os requisitos de um verdadeiro líder. Os artistas
desta Jangada são pessoas que trabalham durante o dia e têm no
teatro um hobby.
Muitos deles, são pessoas deslocadas que estão longe das suas famílias a viver num local totalmente novo. Os artistas desta Jangada são, a sua maioria, professores que, em vez de se queixarem, transformam as dificuldades na alegria da confraternização. Esta gente merece ser aplaudida de pé por ter essa capacidade de superação. Obrigada pela parte que me toca.
Joaquim, quando o espetáculo termina, tu fazes aquilo que mais ninguém faz nesta terra. Tu, o artista, sais do palco para deixar entrar todos, tu fazes a ilha crescer com a forma como acarinhas o público e os teus artistas, tu fazes com que eles se sintam gratos e felizes por terem estado ali. Numa ilha como as Flores, percebe-se que trabalhar contigo é outro nível. E eu acredito que o sucesso da Jangada vem dessa tua capacidade de ser parte de uma equipa, da forma como só tu o fazes.
Não
tenho nenhum poder na ilha, mas sou uma cidadã interessada por tudo
o que acontece e atenta aos resultados. Na Assembleia Legislativa
Regional, o deputado João Paulo Corvelo fez aquilo que devia ser
feito, apresentando um voto de congratulação pelos vinte anos de
direção artística do Joaquim. Estou muito grata ao João Paulo por
essa atitude política, que mostra o seu interesse por aquilo que
acontece na ilha onde todos nos devíamos envolver mais com as nossas
coisas. Temos muito caminho a fazer a nível da cultura, mas já se
deram passos gigantescos e a Jangada está seguramente na base de
todo o trabalho cultural da ilha das mais diferentes formas.
Como
atrás referi, a ilha é conhecida pela beleza e pela forma como essa
beleza está preservada. Mas se é verdade que a Jangada já fez
história, ainda muito se espera dela.
E temos a certeza que assim será porque acreditamos que “as árvores morrem de pé” e esta jangada é feita das “criptomerdias” da competência, da alegria e da resistência!